CRÓNICAS DA INVASÃO DA UCRÂNIA, À DISTÂNCIA

Veja a série no Jornal de Oleiros  - DIRETOR - Paulino Fernandes 

 https://jornaldeoleiros.sapo.pt/2022/03/28/politica-nacional/cronica-da-invasao-da-ucrania-a-distancia-v.html

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VII)

10 Junho  - Mendo Henriques

Ucrânia e Vietnam

 

Aparentemente, tudo separa o Vietname dos anos 1960 da Ucrânia de 2022: um estado sobretudo rural, nos confins do Sudeste asiático, e com uma longa história de identidade e resistência aos impérios vizinhos; e um estado moderno industrializado na Europa do Leste cuja independência é recente e na fronteira de impérios. Contudo, têm de comum terem sido invadidos por entidades imperiais muito mais poderosas, travando uma guerra para se defender; uma guerra bem-sucedida no caso do Vietnam contra a democracia EUA, e outra em curso contra a autocracia de Putin.

Em ambos os casos não houve declaração de guerra. Os EUA envolveram-se de forma gradual. A Resolução do Golfo de Tonkin de 7 de agosto de 1964 autorizou a escalada e o uso da força militar.  A Resolução assenta em relatórios de situação muito duvidosos do destroyer Maddox mas proporcionou ao presidente Johnson o que queria: um cheque em branco para procurar vencer nas suas palavras arrogantes "um pequeno país de quarta categoria de rabo esfarrapado".

No caso Putin, a mesma arrogância levou-o a desclassificar a Ucrânia como nação, a aceitar planos militares mirabolantes e a lançar uma “operação militar especial”, para recuperar o que considera russo. Um exemplo da marcha da loucura na história, conforme o título do livro de  Barbara Tuchman. Em que inclui o caso do Vietname.

Em ambos os casos, os governantes revelaram o que se pode chamar dissonância cognitiva, um nome bonito para o “Não me venha confundir com factos”. Três presidentes americanos travaram uma guerra que não foi aceite como a “dos bons contra os maus”, desencadeando uma brutal crise de consciência nacional, e entre motins e protestos que fazem parte do direito de discordância na grande democracia americana. Quanto a Putin trava uma guerra em que a oposição formal está silenciada ou presa, mas em que crescem os protestos, vindos do interior e do exterior do regime.

Ambas as partes em conflito colocaram condições para negociar a paz. Para os EUA, só haveria negociações após a punição do Vietname com a escalada de bombardeamentos e a contrainsurgência em terra. Para Hanói, só haveria negociações se além do fim dos bombardeamentos, o Vietcong integrasse o governo do Vietname do Sul. Por motivos semelhantes, Kiev insiste que sem evacuação russa dos seus territórios não há paz duradoura.

Três presidentes americanos, os seus gabinetes e as suas chefias militares tiveram a certeza de que poderiam forçar o Vietname do Norte a desistir da resistência, evitando confronto diretos com a China e URSS. A questão das armas nucleares não se colocou sequer. E todos eles falharam.

Primeiro o drama de Kennedy. Queria retirar do Vietnam, mas não teve a coragem pessoal e política de o fazer antes de tentar a reeleição. Teve uma boa oportunidade após triunfar na Crise de Cuba em outubro de 1962 e após o golpe de Estado em Saigão, em 1 de novembro de 1963 contra o presidente Diem e seu irmão Nhu. Dias depois era assassinado.

Depois o drama de Lyndon Johnson cujo ego insaciável o levou a usar os plenos poderes, surdo a indicações. Dizia não queremos jovens americanos a lutar em vez de jovens asiáticos mas foi exatamente o que fez. Em meados de 1967, o general Westmoreland tinha 463.000 militares às suas ordens e pedia mais 70.000. Os adiamentos dos que frequentavam a universidades criou um sistema de recrutamento desigual para ricos e pobres. A mesma desigualdade existe na invasão da Ucrânia porque a maior parte da tropa de Putin vem dos confins da Federação e não dos russos étnicos de Moscovo, Petersburgo ou Rostov

1968 foi um ano de enorme violência nos EUA, com os assassinatos de Robert Kennedy e Martin Luther King, motins raciais, anarquia e reação de selvageria policial. Começou a espiral da compra de armas que até agora não parou. Foi um ano de confusão espiritual segundo Luther King, pois os americanos sentiam-se pela primeira vez na história “os maus da fita”.

Finalmente, veio a dissonância de Nixon. Anunciou a retirada em junho de 1969. Em agosto, o primeiro contingente de 7.500 homens voltou para casa. Ho Chi Minh morreu em setembro, após cinquenta anos de luta. Em Outubro de 1970 Kissinger anunciou prematuramente que a paz estava à vista. Mas apesar de tudo isto, e de contínuas manifestações anti-guerra, Nixon fez um apelo à chamada maioria silenciosa e continuou a guerra estendendo o conflito ao Camboja e depois ao Laos.

No Natal de 1970, 12 dias de bombardeamento feroz reduziram Hanói e Haiphong a escombros. Mao Zedong aconselhou os norte vietnamitas a iniciar conversações de paz . Começaram em Paris em janeiro de 1971. Após mais bombardeamentos e a chamada vietnamização da guerra, um acordo de paz foi assinado em 1973. A situação ficou muito semelhante aos Acordos de Genebra, de 1954 quando a França cedeu perante o Vietnam do Norte. Apesar de Kissinger ter aceite o prémio Nobel da Paz, Le Duc Tho recusou-o.

Não era ainda a paz. A conquista de Saigão pelo Exército Popular do Vietnam e o Viet Cong veio em 30 de abril de 1975, o início de um período que culminou na reunificação do Vietname.

Fez parte da marcha da loucura na história, subordinar o prestígio dos Estados Unidos à intervenção no Sueste Asiático, segundo a teoria do dominó para evitar a disseminação do comunismo. Quando a França perdeu a guerra da Indochina, o general Leclerc, herói da segunda guerra Mundial comunicou aos camaradas americanos que nem 500.000 militares no terreno conseguiriam derrotar os Vietnamitas.

E assim sucedeu. Em vez de reagir à guerra conforme os planos racionais dos estados-maiores, o Vietname reagiu humanamente. Defendeu-se teimosamente como uma nação, como os britânicos contra o Blitz alemão.

Tudo o que os Ucranianos até agora conseguiram, mostra que será como o Vietname. Após resistirem vitoriosamente à invasão de uma potência imperial, estão prontos para um primeiro acordo de paz.  Quanto à Rússia, está-se ainda a aguardar que apareça o Walter Conkrite russo, um “tio Vanya”, que diga a Putin temos de negociar a nossa saída, mas não como vencedores.

Amanhã é outro dia.

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VII)

29 março  - Mendo Henriques

A Rússia ferida pela guerra económica

Após a invasão de 24 de fevereiro, América, União Europeia e Tigres Asiáticos aplicaram sanções pesadas à Rússia com o objetivo de lhe paralisar a economia. Essas sanções visam indivíduos, bancos, empresas, trocas monetárias, transferências bancárias, exportações e importações. Faisal Islam, da BBC News, considera-as uma forma de guerra económica. Empurraram a Rússia para a corrida aos bancos, desvalorização do rublo (mais de 20%) recessão, inflação – já em 25% ao mês.

A sanção mais eficaz e pela primeira vez na história foi o congelamento das reservas do banco central russo. Não é por acaso que Putin recusou na passada semana o pedido de demissão da presidente do Banco, Elvira Naibullina, uma atlantista, e reconduziu-a por mais cinco anos.

Face às consequências brutais da guerra económica, o Kremlin está a regressar às políticas da era soviética, segundo os russos Andrei Soldatov e Irina Bogan, fundadores do Agentura.ru . Nos tempos soviéticos, desde a Sibéria até Sochi, a economia era centralizada. Fábricas e cooperativas agrícolas produziam conforme os planos quinquenais de Moscovo. A nacionalização das empresas com acionistas estrangeiros começou a ser ditada aos poucos por Lenine após 1917 com medidas ad hoc. Desrespeito dos direitos de propriedade, repressão de gestores privados e, finalmente, economia com gestão centralizada.

Agora, ferido pelas sanções violentas do Ocidente em resposta à invasão, Putin começou referir nacionalizações ao terceiro dia da guerra. Dmitry Medvedev há 10 anos era a esperança dos liberais russos, e ostentava os gadgets da Apple. Agora, vice-presidente do Conselho de Segurança, fala da opção de nacionalizar entidades registadas em “países hostis”.

Em 10 de março, Vladimir Putin admitiu a nacionalização dos ativos de 450 empresas estrangeiras. O Kremlin tem uma lista de 60 empresas prioritárias incluindo Shell, IKEA, McDonald’s, Microsoft e Apple. O decreto será em breve enviado à Duma. Já foram aprovadas emendas ao Código Civil sobre propriedade intelectual, permitindo confiscar direitos de estrangeiros.

Tudo isto é um passo mais no caminho da autarquia após a anexação da Crimeia em 2014. Por causa das sanções europeias e norte americanas em 2015-2016, os oligarcas começaram a perder contratos no Ocidente. Putin ofereceu-lhes contratos para a modernização das forças armadas. Em seis anos, muitas indústrias entraram para o complexo financeiro-militar-industrial. Em vez das lutas entre oligarcas, começou a “aceitação militar” – um termo que significa a presença de militares a supervisionar a produção para o exército.

Este retorno à economia planeada foi assinalado por Putin, no Fórum Valdai. Estaria esgotado o modelo de capitalismo existente. Para chegar a algo novo, é preciso olhar para trás, considerar exemplos de sucesso, a economia planeada não me assusta, declarou então.

Entretanto quem sofre é o povo russo. Os preços no comércio de retalho dispararam. As importações colapsaram. Regressam velhos fantasmas. Um deputado do partido no poder, Rússia Unida, sugeriu reintroduzir o crime de “especulação”, conforme o decreto de Lenine em julho de 1918, que só admite o comércio estatal. Fome não haverá ,mas as prateleiras começam a esvaziar-se.

O principal objetivo soviético era a autarquia, uma economia independente de países estrangeiros considerados inimigos. E, em grande parte, dada a grandeza de recursos da Rússia, conseguiram esse feito até 1991. Com rendimentos medíocres e apesar dos gastos militares.

O isolamento de 2022 não é um objetivo: é o preço a pagar pela invasão da Ucrânia. Com o controle  estatal de volta, os quadros de valor abandonam o país. Pelo menos 70.000 especialistas em tecnologias de informação, já o fizeram e apesar de Putin lhes oferecer residências gratuitas e isenção do serviço militar. Mas o decreto de 2 de março não teve efeito; prevê-se a saída de  mais 70.000 especialistas em abril.

A notícia do dia é que após negociações entre russos e ucranianos em Istambul, o vice-ministro da Defesa da Rússia, Alexander Fomin afirmou que Moscovo vai "reduzir a atividade militar na direção de Kyiv e Chernihiv para criar as condições para um acordo de paz. É um sinal ostensivo e que Moscovo reconheceu uma derrota militar tática. Na realidade, foram as forças militares ucranianas que derrotaram os russos Kyiv e Chernihiv e os invasores continuam apostados na conquista de Mariupol. A guerra continua dura e ainda não se sabe para onde vai pender a vitória militar estratégica.

Amanhã é outro dia.

 

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VI)

28 março  - Mendo Henriques

"O homem não pode continuar no poder, por amor de Deus"

 

 

Na Polónia, a 26 de março o presidente Biden desabafou em modo coloquial que “Putin não pode continuar no poder, por amor de deus”. Já o chamara de “assassino” e de “carniceiro”. Já o definiu como “criminoso de guerra”. E hoje, 28 de março, veio confirmar que não estava nada arrependido do que tem dito e continuará a dizer.

Estas afirmações repetidas são ao mesmo tempo emocionalmente genuínas e também efeitos de palco para mostrar a resolução ocidental. Biden anda nestes palcos há mais de quarenta anos, e como que foi treinado para o lugar que desempenha; felizmente a América livrou-se de Trump. Em contraste, o presidente Macron veio considerar que a Europa devia fazer o seu papel habitual de Vénus enquanto a América faz de Marte. Nada de novo.

O mundo calculista da geopolítica é muito mais duro, mais impiedoso e mais volátil do que as palavras corajosas de Biden.  As tomadas de decisão no Kremlin e os riscos de escalada não dependem de palavras que se dizem, mas da avaliação de factos.

Putin escolheu atacar a Ucrânia, contando com a passividade do Ocidente que considera moralmente decadente em estilos de vida; que considera enfraquecido por dois anos de pandemia; financeiramente corrupto ao ponto de partidos, governos e personalidades da direita radical serem financiados por bancos moscovitas; economicamente dependente do gás e petróleo da Sibéria.

As suas declarações neste sentido são constantes desde a conferência de Segurança de Munique em 2007. Tinha outras opções, mas a Rússia, toda ela, da cultura, à economia, à política, e desde que é governada de Moscovo, sempre oscilou entre uma orientação para a Europa e para Ásia, para Ocidente ou para Oriente. Putin já foi atlantista nos seus dois primeiros mandatos. Em Lisboa em 2008, chegou a falar de uma Europa desde Lisboa a Vladivostok, o que dá traduzido, da princesa do ocidente á princesa do oriente. Era uma época em que jogava com a parceria com a NATO, à espera de reforçar o poder interno.

Mas Putin muito mudou muito a Rússia a partir de 2012, quando regressou ao poder. Começou a perseguir a oposição interna – mandando assassinar Boris Nemtsov; e começou a planear a agressão externa que, depois, consumou na anexação da Crimeia e de parte do Donbass. O confronto armado com um território ex-russo/soviético é o modo em que os recursos do Kremlin melhor funcionam e que se enquadram com o seu eleitorado nacionalista. Putin aguardou pela saída de Merkel para entrar em modo expansionista e mantém uma ameaça velada de invasão dos países bálticos.

Nada há, de momento que a Ucrânia e o Ocidente possam fazer senão resistir; como diz Alexei Navalny, as negociações são aproveitadas por Putin apenas para avaliar o adversário e mudar de tática, se preciso for; não é para chegar a um acordo. Considera que, do lado do "mundo ocidental" estão líderes fracos que jamais o enfrentariam. As suas 'condições" para um cessar fogo são draconianas; mas aqui encontrou uma resposta à altura por parte do povo irmão ucraniano. E este conquistou o coração dos amigos da liberdade em todo o mundo.

Não há nada como uma ameaça externa para unir aliados desavindos. Foi o que se confirmou a 24 de março, nas cimeiras da NATO, G7 e União Europeia. A guerra na Ucrânia ressuscitou o Ocidente com a presença do presidente Biden, mas o resultado ficou aquém do desejável. Condenações morais; advertências contra uso de armas químicas e biológicas; apelos à paz. Mas o novo pacote de sanções para contrariar as capacidades de agressão russa foi fraco. Do que se sabe, o envio de armas defensivas para Ucrânia foi reforçado, mas o tabu dos aviões de caça não desapareceu. A prova de apoio à Ucrânia mártir e a unidade ocidental contra Putin é indispensável para a opinião pública ocidental, especialmente a dos Estados Unidos, muito desfasada das realidades externas. E por isso Biden seguiu para a Polónia a 25 e 26 de março e redisse o que disse

Quanto às operações de guerra neste 33º dia seguem a inflexão notada após o fracasso russo em tomar Kiyv de assalto. Bombardeamentos à distância das cidades e concentração do foco no sul. O Schwerpunkt russo mais importante é Mariupol. Se as tropas de Putin conseguirem tomar a cidade, Putin pode declarar alcançado um objetivo estratégico que é o de unir os territórios anexados da Crimeia e do Donbass e dominar o mar de Azov.

Amanhã é outro dia.

 

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (V)

27 março  - Mendo Henriques

A tragédia de Putin

A tragédia grega carateriza-se por um enredo em que os acontecimentos se desenrolam com altos e baixos, sem sabermos onde vão parar. Mais perto do fim, é revelado ao protagonista o seu destino fatal: ousou desafiar o destino e os deuses; cometeu um crime de que podia ter ou não consciência. Chama-se isso a hybris; é mais do que arrogância, orgulho, insensatez. A 24 de fevereiro revelou-se o destino trágico de Vladimir Putin.

Durante mais de 20 anos, foi um dirigente poderoso, incontestado e com relativo sucesso, segundo os padrões russos. Nos dois primeiros mandatos, até 2008, a Rússia prosperou com a alta do petróleo, teve uma indústria empreendedora, foi relativamente livre, e tentou aproximar-se da Europa. Putin ganhou confiança com os sucessos. Mas a partir de 2012, em que se tornou de novo presidente em eleições manipuladas nos números, as coisas começaram a degradar-se. O assassinato em pleno dia, do seu opositor Boris Nemtsov, numa ponte em Moscovo, foi o sinal da caça à oposição. Seguiram-se prisões e tentativas de envenenamento de outros. Mudou a equipa económica afastando Anatoly Chubais, agora exilado; e mudou de ministro da Defesa, chamando Sergei Shoigu, que pactuou com interesses instalados e corrupção nas forças armadas russas. Entrou em funções a equipa do complexo financeiro, militar e industrial que se mantém em funções em 2022.

Desde 2014 com a crise de Maidan na Ucrânia, Putin começou a aplicar a ideia fixa que conduziu à tragédia de 24 de fevereiro; reconquistar a Ucrânia, começando pela Crimeia e Donbass. O seu legado histórico, de acordo com a missão da terceira Roma seria o retorno da Ucrânia ao controle da Rússia. É um prémio pelo qual vale a pena lutar e dar a vida.

A obsessão de Putin com a Ucrânia que considera parte da Rússia tem de ser enquadrada nos movimentos profundos da história; não é apenas uma questão de segurança nacional e de conspirações do Ocidente. Putin sempre pensou assim, tal como muitos russos e ucranianos da geração soviética. Dois anos de confinamento COVID-19 levaram a leituras que afinaram este sentimento e que redundaram no seu já famoso artigo- declaração do verão de 2021 em que anunciava a tragédia: a Ucrânia não é uma nação; deve ser neutralizada.

Para planear a invasão, Putin não quis pensar cenários nem debater custos económicos. Segundo Alexander Gabuev, no The Octavian Report, escondeu o plano. A Operação militar especial não era exatamente uma guerra e foi planeada de modo quase clandestino com um punhado de militares e siloviki. Como ex-KGB, Putin não queria que os detalhes vazassem para o exterior, e ainda está por apurar como os serviços de informação americanos receberam planos tão detalhados, possivelmente do interior do Kremlin. Os custos loucos não lhe interessaram.

Tudo isto ajuda a explicar por que razão o plano de operações era um ataque cirúrgico que eliminaria as defesas aéreas da Ucrânia, destruiria os sistemas de comando e controle, alvos de depósitos de armas e concentrações de tropas e Volodymyr Zelensky fugiria para Washington. O exército ucraniano ficaria desmoralizado; parte do país saudaria a Rússia com flores e a outra parte não resistiria. Não houve generais do estado maior russo  para perguntar: “Ok, e se isso não acontecer? Estamos prontos para conquistar as grandes cidades e para ocupar o país?” Não havia plano B.

Para lidar com a China e o mundo árabe, Putin escuta os profissionais. Mas quando se trata dos Estados Unidos e Europa, dispensa-os: “Somos europeus, conhecemo-los” é o que pensa. Com a Ucrânia, é ainda pior. Entregou as informações sobre o país irmão ao 5ª departamento dos assuntos internos da FSB, Serviço Federal de Segurança russo. Nunca ouviu os diplomatas. Euromaidan, a resistência dos ucranianos em que o Donbass seja russo desde 2014, isso não lhe interessa: “Eu conheço a Ucrânia. A Ucrânia é como nós. São os europeus e os americanos que nos estão a provocar   é estranho, algo que lhes impuseram.”. É certo que pela Ucrânia combatem os neo nazis do regimento de Azov e o seu partido teve 2ª nas eleições; o numero de forças de extrema direita russa é incomensuravelmente maior. Putin usou este fragmento para falar de desnazificação e passou esta mensagem à desinformatsya que a espalha pelos putinistas ocidentais.

O resultado foi a loucura da Operação Militar Especial, a hybris. Putin julgou que conquistaria a Kiev em três dias; as tropas seriam recebidas com rosas; o presidente Zelensky fugiria para Washington, como a criatura do Afeganistão.  Não tinha plano B. E por estar convencido que o Plano A foi mal executado e inciou as purgas dos maus executantes. O general  Sergey Beseda, chefe do 5º departamento do FSB, e o seu vice Anatoly Bolyukh, responsáveis pela informação estrangeira e especializados na Ucrânia, estão em prisão domiciliar, segundo o jornalista Andrei Soldatov.

Sabe-se agora que, com um dia de antecedência, quando os generais tomaram conhecimento da missão, vários deles ficaram abalados. Dizer a um militar russo que a missão é bombardear Kiev para libertá-la dos nazis, é coisa de louco. O moral das tropas é baixo. Ninguém estava preparado, e o desempenho da tropa russa está a ser mau.

A tragédia de Putin foi revelada. Começam a surgir declarações que os objetivos de guerra se devem restringir ao controlo do Donbass. O desenlace aguarda-se.

Amanhã é outro dia.


Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (IV)

26 março  - 

A “operação militar especial”

 

Estamos habituados a ouvir o Kremlin afirmar que na Ucrânia está a decorrer uma operação militar especial, “OPE”, e não uma guerra. Esse é o discurso oficial, acolhido pela maioria do povo russo que só pode seguir os canais e a imprensa do regime. No Ocidente, a maior parte das televisões e muitos especialistas tomam isto por mentira pura. Enganam-se e, ao enganarem-se, esquecem dimensões decisivas que, só elas, explicam a derrota crescente da criminosa invasão de Putin

Em primeiro lugar, discurso oficial é discurso. Após a Segunda Guerra Mundial entendeu-se que os Estados não tinham o direito de travar guerras ofensivas. Todos os Ministérios “da Guerra” passaram a ser designados “de Defesa" no final da década de 1940. Todos defendem, ninguém ataca. O conflito só surge contra "criminosos", "terroristas", "jihadistas", "nazis". Abolimos a distinção do Direito Romano entre inimigo e criminoso. Os Estados apenas admitem que travam guerras contra culpados de crime, fazendo "operações de paz", e "contraterrorismo". As potências fazem guerras, mas primeiro criminalizam e desumanizam os inimigos. Donde o discurso sobre "terrorismo" real, “armas de destruição maciça” que não existiam e agora o delírio de Putin sobre a “desnazificação” da Ucrânia.

A Rússia não planeou uma guerra, mas sim uma operação militar especial. Uma guerra é organizada por escalões. Após o primeiro ataque, vem o segundo escalão, depois o terceiro, a liquidar defensores, ocupar território, controlar linhas de abastecimento. Nada disso sucedeu. Após o falhanço da tomada de Kyiv nos três primeiros dias, graças à corajosa e eficaz defesa ucraniana, os invasores começaram a ficar sem combustível, sem alimentos e sem munições, e não sabem organizar os suprimentos. A Rússia tem muitas máquinas de guerra, mas revelou-se fraca em estruturas de apoio e controlo e comando.

A Rússia não preparou uma guerra e muito menos uma Blitzkrieg. E nisto, Putin está correto. A declaração sobre a OPE é genuína, porque não esperava resistência. É isto que os media não sabem destacar. Em rigor, Putin não sabe fazer guerras. Durante toda a vida organizou e lançou operações especiais contra opositores muito mais fracos. E acostumou-se a consolidar o poder com essas OPE’s. Assim iniciou conflitos na Chechénia, Geórgia, e Síria com objetivos políticos. A coragem e eficácia dos Ucranianos estão a provar que, pela primeira vez na vida, Putin pode ser derrotado. O que o torna um dirigente encurralado e perigoso.

Esta impressão cada vez mais cavada de derrota no terreno levou o Kremlin a mudar de discurso no dia de ontem, restringindo os objetivos da OPE à ocupação do Donbass. Chocantes foram as declarações de Dmitry Medvedev, ex-presidente russo, sobre o espectro do uso de armas nucleares.  Em suma, ameaçou que a doutrina nuclear do Kremlin não exigia que um Estado inimigo usasse essas armas em primeiro lugar. O ministro da Defesa afirmou que a "prontidão" nuclear era uma prioridade.

O dia foi ainda marcado por contra-ataques ucranianos em várias frentes, nomeadamente na grande cidade de Kherson.

Amanhã é outro dia.

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (III)

25 março  - 

Como tudo começou

 

A queda do Muro de Berlim em 1989 foi um marco histórico que permitiu a reunificação alemã em 1990. EUA, França, Inglaterra e Rússia eram as quatro potências com forças militares ocupantes da Alemanha, conforme os tratados de Potsdam. As potências ocidentais contactaram Gorbachev para debater os termos da reunificação alemã. Gorbachev terá aceitado a retirada das tropas com a condição de que não haveria extensão da NATO até às fronteiras russas. Para garantir a aprovação soviética da Alemanha unida, foi acordado que tropas estrangeiras e armas nucleares não seriam estacionadas na Europa do leste. Contudo, nenhum tratado foi celebrado, e o teor das conversações é muito debatido; segundo historiadores, parece ter havido alguma ingenuidade de Gorbachev, centrado na evolução interna da URSS. Entre os russos que evacuaram estava o coronel Putin, do KGB em Dresden. Um ano depois, após o golpe falhado em Moscovo dos militares soviéticos, Gorbachev cedeu o governo a Boris Yeltsin e este chamou Putin em 1999 para primeiro-ministro e, depois, presidente em 2000.

A história continuou.  Entre 1999 e 2017 a NATO incorporou países da Europa central e de leste, muitos deles antigos países soviéticos: Chéquia, Hungria, Polónia, Eslováquia, Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia,  Albânia, Croácia e Montenegro.  Em particular com a declaração de Bucareste, 2008, houve um apoio à adesão à NATO da Geórgia e a Ucrânia. A França voltou à NATO militar em 2009.

O povo ucraniano surpreendeu o mundo com as manifestações da Praça de Maidan. Estas foram iniciadas a 21 de novembro de 2013 em protesto contra a imposição de Putin ao presidente Yanukovich de repudiar um acordo de associação à União Europeia. A revolta de Euromaidan alargou-se durante meses e com a Revolução da Dignidade em fevereiro de 2014 desencadeou a queda de Yanukovich; os novos governantes, entre os quais o presidente Poroshenko não conseguiram fazer a Ucrânia descolar economicamente.

Em fins de fevereiro de 2014 Putin invade a Crimeia que considera “terra santa russa" com “os homenzinhos verdes” – militares russos sem insígnias - apanhando desprevenida a Ucrânia. Parte dos territórios de Donetz e Lugansk foram também ocupados por milícias russas. Nasce um conflito armado que, segundo relatórios de observadores da OSCE, causou cerca de 800 mortos em sete anos; 3/4 separatistas e ¼ ucranianos; não é um genocídio como diz a propaganda de Putin.

O conflito continuou, mas parecia localizado e debatia-se de quem era a “culpa”; se da Rússia que queria regressar à sua república ex-soviética e tinha meios e apoios no terreno, em particular no Donbass e Crimeia; se do Ocidente que queria a Ucrânia na sua esfera de influência.

Em Julho de 2021, Putin publicou um artigo oficial em que nega a Ucrânia como nação e se queixa do alargamento da NATO e do cerco à Federação russa. A partir de Novembro, forças militares russas deslocam-se para as fronteiras da Ucrânia, até atingirem entre 150 a 200 mil homens no inicio de 2002. Destes, 40 mil vão em manobras para a Bielorrússia, alguns colocados a 70 km de Kiyv. Ambientalistas não eram com certeza. Na semana de 16 a 23 de fevereiro cresceram exponencialmente incidentes e explosões no Donbas.

Foi então que em 24 de fevereiro veio a invasão de “surpresa”. Os serviços de informação americanos e o presidente Biden tinham divulgado avisos prévios que a invasão seria a partir de 16 de fevereiro. Terão recebido informação das estruturas russas de segurança e defesa, que podem estar agora na mira das purgas anunciadas por Putin a 17 de março, tanto quanto o “nevoeiro da guerra” e a “diplomacia secreta” permitem ver. Mas a resistência do povo ucraniano foi a outra grande surpresa que fez a diferença e conquistou o coração dos amigos da liberdade em todo o mundo.

No dia de hoje, confirma-se que as forças ucranianas continuam a contra-atacar na frente de Kyiv, no que já se chama a batalha de Irpin, libertando núcleos suburbanos e aliviando a pressão sobre a capital. O potencial russo de ataque continua a ser reforçado, sendo que a proporção de forças continua pesadamente em seu favor.

No porto de Berdiansk, no mar de Azov, mísseis balísticos ucranianos afundaram um navio russo com armas e suprimentos para os sitiantes de Mariupol e o fogo alastrou a outras embarcações, depósito de munição e terminal de combustível.

Amanhã é outro dia.

 

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (2)

24 março  - Mendo Henriques

O mês mais longo

Faz hoje um mês que começou a guerra da Ucrânia. Mês mais curto porque começou a 24 de fevereiro. Mês mais longo, porque desde 1989 a história da Europa não mudava assim. O autocrata do Kremlin - que até agora só contava vitórias - encontrou pela frente um povo determinado a resistir-lhe e que comunica ao mundo a sua resistência.

A unidade da Ucrânia na defesa das suas gentes e terra é a grande realidade desta invasão. Os habitantes cercados em Mariupol, Sumy, Chernichev, e Kharkiv vivem em situação trágica, sob bombardeamentos diários de mísseis e artilharia. Exceto os que conseguem escapar por corredores humanitários e algumas dezenas de milhar deportados para a Rússia, não desistem. Mais de 4 ou 5 milhões de refugiados vieram para Ocidente. 70 a 75% deles são mulheres e crianças. Pais, maridos, filhos, irmãos, avós, namorados ficaram para trás a lutar. O porta-voz do UNICEF, James Elder, afirmou à CNN que Desde o início da guerra, há um mês, uma em cada duas crianças teve de fugir de casa. Cada dia é um dia de preocupação para os familiares.

Os Ucranianos dispõem-se a sacrifícios que, no Ocidente consumista, há muito não imaginávamos. Os protestos de civis sucedem-se em territórios temporariamente ocupados; os colaboracionistas são mal vistos, como em Meliutopol; um colaboracionista local foi morto há dias. E estas populações partilham língua, cultura e ortodoxia com a Rússia.

Uma das grandes razões para a resiliência da Ucrânia é estar a reagir como um ser vivo, um organismo atacado que não depende só de iniciativas individuais. A guerra uniu os Ucranianos aos dirigentes. Antes da invasão, Zelensky contava 23% de popularidade. Não é que não tivesse apoio popular; o seu partido Servos do Povo, ganhou folgadamente em eleições democráticas Mas ele e seus ministros e comandantes são a face de um povo unido.

A invasão de Putin criou uma unanimidade decisiva em operações militares. Os moradores de pequenas cidades e vilas formam milícias que são absorvidas pelas unidades de defesa territorial. Equipam-se com os numerosos armamentos que chegam dos aliados europeus e dos Estados Unidos. As unidades armadas tomam iniciativas e adaptam-se à situação no campo de batalha. 

Os ucranianos estão a travar uma guerra 2.0. Ou 3.0.  São tantas as microiniciativas tomadas que seriam impossíveis, ou nunca aconteceriam, se fossem ordenadas do centro do poder. Pelo contrário, os invasores russos estão cada vez mais imobilizados com uma crise de logística e de controlo e comando, sendo que já 5 ou 6 dos seus generais foram liquidados.

Foi assim o EuroMaidan em 2013-2014. Foi um movimento que começou e se aguentou sem liderança central. Surgiram muitas teorias da conspiração sobre quem alimentava Maidan precisamente porque faltava um poder central. Esforços semelhantes ajudaram a Ucrânia quando a Rússia invadiu o Donbas em 2014.

Os laços na sociedade ucraniana alimentam o esforço de guerra e levam a quebrar os dentes a Putin e em breve, esperemos, a redimir o povo russo. Окупанти геть! Слава Україні!  Glória à Ucrânia

O acontecimento do dia é a cimeira da União Europeia, NATO e G7. Aguarda-se que dela venham mais apoios em armas defensivas e mais um pacote de sanções. A presença do presidente Biden na Europa é muito importante.

Amanhã é outro dia.

 

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância.

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23 março  - Mendo Henriques

O que me ligava à Ucrânia antes de 24 de fevereiro de 2002? Pouco. Visitei Kiyv - chamávamos-lhe ainda Kiev. Fiquei a admirar as pessoas afáveis com que lidámos. Apreciámos as longas caminhadas na avenida Khreschatyk, a porta Dourada, as cúpulas sonhadoras das igrejas, o bairro de Podilsky, os parques e as vistas sobre o Dnipro. Visitámos de noite, Baby Yar, o memorial anti nazi. Sendo o alojamento na Praça Maidan, tivemos ocasião de refletir nos eventos pró europeus da Ucrânia de 2014. Em Lisboa, participei na eucaristia da comunidade ucraniana da Igreja de Nossa Senhora da Nazaré em Lisboa. Valeram os cânticos porque russo/ucraniano quase que só através dos algoritmos de tradução google.

O que me liga à Rússia? Muitas coisa, desde a leitura assídua enquanto miúdo e, depois, algum ensino na universidade sobre Alexandre Solhjenitsyne e Leo Tolstoi; o visonamento de muitos filmes e séries; e visitas de estudo a Moscovo e São Petersburgo.  O estudo ao longo dos anos de uma das culturas mais profundas da Europa que começa com a Rus’ de Kiev precisamente e cuja modernidade está cheia dos hiatos e convulsões que todos conhecemos. Tolstoi, um dos poucos autores que consigo reler ou rever nos vários livros e filmes. Tem lá quase tudo com que a ficção multiplica a realidade: povo sofredor, destino desconhecido, estado despótico, invasores à porta, procura da felicidade pessoal, empenhamento cívico, e, claro, a guerra e paz.

Foi essa guerra que, a 24 de fevereiro, mexeu comigo e com todo o mundo. Acontecimento global, como a COVID-19. E que vai deixar ondas no mar da história com um desenlace desconhecido Fora do cálculo racional dos interesses, e do jogo de xadrez puramente racional do equilíbrio de poderes, após um passado de vitórias políticas, Putin lançou a criminosa invasão da Ucrânia. A população está a sofrer, refugiados, bombardeados, fora os que já morreram, civis e militares. A tropa russa também está a morrer em números trágicos e a guerra segue o seu curso.

Hoje, a 23 de março ,as atenções centram-se em Mariupol. Putin jamais mudará de trajetória antes de conquistar essa cidade que une os territórios ucranianos que invadiu entre a Crimeia e o Donbass. Amanhã é outro dia.