A REVOLUÇÃO DE 1640 E A PRIMEIRA GUERRA GLOBAL - 1640-1668
A 1ª Carta do Manuelinho
“Nós os meninos e rapazes, ministros da divina justiça com particular
providência de Deus nosso Senhor, e com alçada sobre os traidores e
perjuros à pátria, executores dos tributos de um Rei tirano, e com poder de
executarmos castigos já decretados no tribunal da divina justiça, com
autoridade quase divina a nós concedida, etc. – Fazemos saber que levados
nós do cristianíssimo zelo da honra de Deus, amor da pátria, fome de nossos
irmãos, pobreza de nossos pais, necessidade de nossas órfãs pelo perigo, a
que também estão expostas pelas presentes tiranias, finalmente da grande
pobreza, de que a nós se queixa todo o estado de gente: desejando nós pela
obrigação de nosso ofício buscar meio para se atalharem traições e roubos
tão públicos, e escandalosos, ainda à custa dos próprios bárbaros que não
conhecem que coisa é Deus: e como executores da divina justiça: Mandamos
a toda a pessoa, assim seculares, como frades e clérigos, e aos padres da
Companhia de Jesus, estejam presentes com suas orações e pessoas para nos
acudirem a executar a sentença, que ora se despachou no tribunal da divina
justiça, para que morra todo o que for traidor à pátria, e quiser executar
tributos do Rei tirano, ou que der para isso indústria alguma e para que com
o exemplar castigo de seus vergonhosos feitos não se renovem outros novos
Catilinas e Marcos Antônios, para que não venham estes tais a ser
queimados por traidores, como foi o que queimaram este presente ano por
judeu; do que se seguirá verem os portugueses a acabar de perder seu valor,
e serem infiéis a Deus, e a sua pátria, e a seu Rei, sendo cristão; e ficarão
prevalecendo contra nós os tiranos, que cada dia acrescem, e as fomes que há
tanto tempo padecemos, sujeitos à servidão de um tão tirano Faraó, que
parece nos quer vender até a própria lei que temos; não entendendo que há-
de pôr Deus seus olhos de misericórdia nas lágrimas de um povo, que
sempre foi exemplo de cristandade, como é a nossa ilustre cidade de Évora.
– Dada aos 22 de Agosto de 1637 – E eu Manuelinho Secretário o
escrevi.”
In: SERRÃO, Joel; MELO, Francisco Manuel de. Alterações de Évora (1637).
Portugália, 1962.p, 147 - 148
"Carta que os Meninos de Évora mandaram a Gaspar do Rego bispo do Porto"
Datada de Évora, em 29 de agosto de 1637. "Por mandado do senado todo junto Manuelinho".
«Á noticia d'esta cidade chegou, reverendissimo bispo tyranno, ser v. s.ª a origem de que este reino tão catholico padeça oppressões tão insoffriveis, como elle testefica no miseravel estado em que se vê, tomando-vos para executar a mais infame empresa que em nossos tempos vimos, nem de nossos antepassados sabemos;--que até considerada envergonha. Porque, quando a desventura chegasse a tanto, que, como por prophecia, houvesse alguem de tyrannisar a patria, fosse o fidalgo pobre, rico de filhos e falto de rendas; e ainda n'este, depois de satisfeito, cessaria a ambição. Mas um prelado, a quem havia de faltar o tempo para dar graças a Deus de o chegar a ser, e que aos pobres havia de dizer: tribuo vobis pro omnibus quæ retribuis mihi--grão maldade! e com razão podem dizer por vós o que Platão por Dionisio: Vidimus monstrum in natura honimis.[67]
«Que naus vistes entrar n'estes portos? Que frotas vistes vir lá das Indias? Que riquezas n'este pobre reino? E que farturas n'este nosso Alemtejo que, como filho tão mimoso de seus paes, sentiu como de padrasto o pão de vosso alvitre? Mas a verdade, Aquelle que é a mesma verdade, diz no Deuteronomio, cap. 4: Colligite ex vobis viros sapientes, et nobiles. A sciencia em vós é em tudo um retrato natural da de Nero, que aprendeu todas tendo por mestre ao grande Seneca, e foi um dos mais torpes tyrannos do mundo, até chegar a matar sua propria mãi, como vós agora quereis fazer á amada patria; porque em fim, sciencia sem virtude, não vem a ser uma nem outra cousa; mas elle já nenhuma professava, e vós professaes ambas, e não exercitaes alguma. A nobreza conservam os que carecem d'ella, e o dar-lhe nascimento, na benigna clemencia, é para que, convocando os animos, esqueçam a baixeza dos seus progenitores. E vós, pelo contrario, querereis dar vida ás de Antonio Fernandes, vosso pai, e de Anna Antonia, sua mulher... Os extremos todos são maus. Temos rei catholico, não o façaes tyranno; é principe benevolo, não o façaes cruel. Deixai Portugal ser pobre já que vos deixou ser bispo. Não vêdes que por Targa ser de herejes, vos fizeram do Porto? e que por o Porto não querer, vos[68] faziam de Coimbra? As cidades são como os parentes; corre-lhes a dôr pelas veias como o sangue a ellas. Ao menos estai advertido no salto em claro que haveis de fazer por este arcebispado, tomando o pé atraz como Sebastião de Mattos8, mas não seja d'estas partes. Não sei se vos poderão valer os fóros das casas de Luiz de Miranda. O cavalleiro, se lhe chamam tardo, madruga; se desbocado, cala-se; se demasiado, tempera-se; se adultero, abstem-se; se peccador, emenda-se; mas, se é traidor á patria, não ha emenda nem desculpa. Sabei que a propriedade d'este reino foi sempre não desobedecer nunca ao seu rei, nem deixar-se mandar de tyrannos, e que vale mais pobre, dando pouco, que desesperado.
«De muito atraz trazemos por criação a distribuição de tres cousas: a alma para Deus, o melhor para nós, e a fazenda para el-rei; e quem se viu n'isto, não duvída dar quartos, mas quintos para quintas; e por vosso conselho não havendo n'este reino quintaes (digo de arvores, que de canella já nem sabemos de que côr é) soffre-se mal. E se vós quereis excessos para a patria, e[69] permittir-se contra ella o favor que houve Nuno Alvres para Pedralves traidor, a quem o céo subverteu, haverá meninos em Evora para Gaspar do Rego se abrazar.
«Por Ithaca, nobre ilha de asperos penedos, passou Ulysses immensos trabalhos. Disfarçado el-rei Codro para libertar a patria, se offerece á morte; pela patria renunciou o imperio; e Mucio Scævola renunciou a esperança da vida por a tirar á propria que como vós a perseguia9. E os naturaes que a isto não se oppõe vem a acabar n'ella, como Annibal em Carthago e Catilina em Roma. Attendei ao que diz o apostolo: Anna militiæ nostræ non sunt carnalia, sed spiritualia. Sois christão, sois sacerdote, sois prelado, sois natural do reino: dizei d'elle o que n'elle vêdes, informai das Necessidades; e, se não sabeis d'ellas, ahi amam a caridade, vereis de quantas sois secretario, quantos fidalgos padecem, quantos senhores acabam, quantas donzellas perecem. Falta o ouro, a prata; o contracto, por que vós não faltaes, que nem Deus o quer dar superfluo, nem o necessario se promette dar-se. Perguntando-se a Alexandre para que queria[70] ser senhor de todo mundo, respondeu: Todas as guerras que se levantam são por uma de tres causas: ou por haver muitos deuses, ou por haver muitos reis, ou por haver muitos tributos: quero ser senhor de todo o mundo e rei para que não haja n'elle mais que um Deus, nem se conheça mais que um rei, nem se pague mais que um tributo.
«Elle era pagão, e vós christão; elle rei, e vós bispo; elle creado na terra, e vós na igreja; nunca ouviu o nome de Christo, e vós jurastes defender o Evangelho. Parece que muito differe uma cousa das outras. Se o fazeis por fama, já é geral, pois nós vos sabemos o nome. O vosso nome é flagellum patriæ. Se o fazeis por interesse, já basta o que tendes; se mais quizerdes, já cá passamos signal; se nós podermos, com o mais constará a pontualidade... Tende lastima de um reino que, sendo antigamente um mar, se vai esgotando a Castella por um Rêgo. Nosso Senhor vos converta, e vos traga a nossas mãos, para augmento d'este reino, e vida e paz e quietação de seu rei. Evora 27 de agosto de 1637. Por mandado do povo todo junto
Manoelinho Menino.»[71
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