GIL VICENTE, cristão livre, obra aberta.

Explorar um mundo

Almeida Garrett - Um auto de Gil Vicente https://www.teatro-cornucopia.pt/htmls/conteudos/EElVElZFVEqDdAJhPs.shtml

 Carolina Michaelis de Vasconcelos (1851-1925), a maior comentadora da obra de Gil Vicente,

https://jorgeteles.com.br/site/category/as-musicas/o-projeto-gil-vicente/

 

1. Visitação, 1502 Gil Vicente

Uma centena de versos. Terça-feira, 7 de Junho de 1502, na câmara da rainha D. Maria que deu à luz, na véspera, o futuro D. João III, está presente toda a corte. Um vaqueiro irrompe na sala, deslumbrado ante as maravilhas de tal lugar. Apresenta os cumprimentos ao recém-nascido e à família real e anuncia a entrada de trinta companheiros, «porqueiriços e vaqueiros», que trazem oferendas de leite, ovos. É esse o rito da «visitação».

 

 

Estreia: Terça-feira, 7 de Junho de 1502, na câmara da rainha Dona Maria, no velho palácio da Alcáçova.

 

IMAGEM:. RTP Nicolau Breyner

https://museu.rtp.pt/coleccao-tv-radio/conteudos-televisao/347/monologo-do-vaqueiro?page=63

 

2.Auto em Pastoril Castelhano, 1502


Uma écloga de Natal e mais ainda. Os pastores velam na noite, tagarelando, e depois adormecem. Um anjo desperta-os e anuncia-lhes o nascimento do Messias. Dirigem-se para o Presépio, apresentam as suas oferendas ao recém-nascido, cantam e dançam; e, a terminar, evocam as profecias relativas à Virgem e a Cristo. Pastores, Gado, Profetas, Salomão e a Virgem, a Cabana Real, o Conselho e Aldeia, Mesta de Pastores de Espanha, outras leituras se possibilitam.

Excerto:

Pardiez que es para notar,
Pues el Rey de los señores
Se sirve de los pastores:
Nueva cosa
Es esta y tan espantosa.

Pastores: GIL, BRÁS, LUCAS, SILVESTRE, GREGÓRIO, MATEUS
Entra um pastor inclinado à vida contemplativa, e anda
sempre solitário. Entra outro, que o repreende disso. E porque a obra em si dali por diante vai mui declarada, não serve mais argumento

 

 

3. Reis Magos 1503


O terceira dos autos iniciais foi concebido para a festa da Epifania, que se celebra em 6 de Janeiro. Pastores dirigem-se a Belém para visitar o Menino que acaba de nascer. Perdem-se no caminho e encontram um eremita e um cavaleiro da escolta dos Reis Magos. Os reis chegam
e a breve representação termina com um vilancete cantado diante do Presépio.

IMAGEM: A população da aldeia de Figueira, em Penafiel representa todos os anos o Auto dos Reis Magos.

 

4. S. Martinho 1504

Este auto ou "milagre" foi representado nas Caldas da Rainha em 1504 pela festa do Corpus Christi. É o único exemplo de «vida de Santo» legado por Gil Vicente. A peça, escrita em castelhano, põe em cena o episódio em que Martinho dá a um pobre a metade da sua capa. É o Inverno feito Verão.

Não sei que te dê, nem o que te consola

Nem a teus males posso remediar...

Mas posso este manto ao meio repartir,

Pois não trago aqui mais nenhuma esmola.

A Virgem de Misericórdia aparece com uma capa em bandeiras da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Azeitão, Elvas e Arouca. Assim a rainha D. Leonor retoma o gesto de São Martinho para a vida social.

 

EstreiaEste auto foi representado em 1504 nas Caldas
(Caldas da Rainha) pela festa do Corpus Christi.

 

Didascália de 1562: O auto que adiante se segue foi representado à mui caridosa e devota senhora a rainha Dona Leonor na igreja das Caldas, na procissão de Corpus Christi, sobre a caridade que o bem aventurado São Martinho fez ao pobre quando partiu a capa.

IMAGEM: Representação a 12 e 13 de Maio de 2017 | Largo da Copa, Caldas da Rainha

Dramaturgia e montagem de textos | Isabel Lopes
Encenação | Fernando Mora Ramos

 

 

5. Quatro Tempos 1504

Um auto de Natal, quase contínuo de monólogos e de recitativos. Um serafim, acompanhado por um arcanjo e dois anjos, vem visitar o Presépio. Chegam a seguir as quatro estações. O Inverno é um pastor com linguagem «saiaguesa» e que caminha ao frio. O Verão (hoje a Primavera) é um jovem que traz flores. O Estio (a que no Antropoceno se chama Verão) treme com febres. O Outono é mais insignificante. Entra Júpiter a anunciar o fim das antigas divindades e as quatro estações juntam-se-lhe para apresentar a Jesus recém-nascido, o universo inteiro: astros do céu, montanhas e florestas, os quatro rios do Paraíso, as geadas do Inverno, a vida fervilhante da
natureza primaveril. A terminar, o rei David na figura de um pastor e oferece a Jesus o sacrifício do seu «espiritu atribulado» e do seu «coraçón contrito».
.

 

Didascália de 1562: Esta obra se chama dos Quatro Tempos: foi representada ao mui nobre e próspero Rei D. Manuel na cidade de Lisboa, nos paços de Alcáçova, na capela de São Miguel, por mandado da sobredita Senhora sua irmã, nas matinas do Natal

FIGURAS: Verão, Inverno, Estio, Outono, Júpiter, um Serafim, Dous Anjos, e um Arcanjo.

IMAGEM: Frontispício do Auto dos Quatro Tempos. Gravura
presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil
Vicente (...) Vam Emmendadas Polo Sancto Officio,
edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal.

 

A. Sermão de Abrantes 1506

 

Sermão feito à cristianíssima rainha dona Leonor e pregado em Abrantes ao muito nobre rei dom Manuel, o primeiro do nome, na noite do nascimento do ilustríssimo infante Dom Luís.
.

 

Didascália de 1562: Esta obra se chama dos Quatro Tempos: foi representada ao mui nobre e próspero Rei D. Manuel na cidade de Lisboa, nos paços de Alcáçova, na capela de São Miguel, por mandado da sobredita Senhora sua irmã, nas matinas do Natal

FIGURAS: Verão, Inverno, Estio, Outono, Júpiter, um Serafim, Dous Anjos, e um Arcanjo.

IMAGEM: Frontispício do Auto dos Quatro Tempos. Gravura
presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil
Vicente (...) Vam Emmendadas Polo Sancto Officio,
edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal.

 

6. Quem tem farelos?

Ordonho e Aparício, dois criados, se encontram na rua. Um deles trabalha para um escudeiro, Aires Rosado, sem dinheiro mas metido a galante. O escudeiro faz uma serenata à namorada. Cães, gatos e galos fazem barulho. A mãe da moça, a Velha, entra fazendo uma longa imprecação, maldizendo quem a faz levantar-se no meio da noite. Vai-se o Escudeiro cantando. A Velha fica ralhando com a filha, Isabel. Quer que a filha trabalhe mas esta só quer saber de se enfeitar. Saem.

 

Começam as obras do quarto livro, em que se contém as farsas.

DIDASCÁLIA: Este nome da farsa seguinte, Quem tem farelos?, pôs-lho o vulgo. É o seu argumento que um escudeiro mancebo per nome Aires Rosado tangia viola e a esta causa, ainda que sua moradia era muito fraca, continuadamente era namorado. Trata-se aqui de uns amores seus per cinco figuras: OrdoñoApariçoAires RosadoIsabel e ũa Velha sua mãe. Foi representada na mui nobre e sempre leal cidade de Lixboa ao muito excelente e nobre rei dom Manoel primeiro deste nome, nos paços da Ribeira. Era do Senhor de 1505 anos.

Ficha Artística

15 de Agosto de 1986 | Hospital Termal das Caldas da Rainha

Encenação | José Carlos Faria
Cenografia, Figurinos | José Carlos Faria
Direcção Musical | Joaquim António Silva
Coreografia | José Correia
Máscaras | Rogério Guimarães
Iluminação | José Eduardo e António Plácido
Guarda – Roupa | Conceição Marques, Natália Ferreira, São Cardoso e Arminda Constantino
Fotografia | Joaquim António Silva
Interpretes | António Plácido, José Mora Ramos, José Carlos Faria, Isabel Muñoz Cardoso, Isabel Leitão e Joaquim António Silva

https://teatrodarainha.pt/eventos/quem-tem-farelos-de-gil-vicente/

 

 

7. Alma

Santo  Agostinho esclarece que, assim como os peregrinos descansam em estalagens, a Alma tem uma pousada para repouso durante sua jornada na vida: a Santa Madre Igreja. Entram um Anjo e a Alma. O Anjo está ali para orientá-la na jornada. Ao afastar-se o Anjo, o Diabo tenta a Alma com prazeres. Volta o Anjo e encoraja a Alma a resistir. O Diabo veste-a com riquezas e jóias. É a luta da Alma. Diz que está cansada e o Anjo a leva à estalagem. A Igreja a acolhe. Dois Diabos lamentam por almas perdidas. A Igreja pede aos seus quatro Doutores, Agostinho, Ambrósio, Jerônimo e Tomás, para apresentar à Alma os símbolos sagrados e explicar os seus significados. Os símbolos são chamados de iguarias sobre a mesa de refeição. São eles: açoites, a coroa de espinhos, os pregos e o crucifixo. Em louvor, entoam um Te Deum.

 

DIDASCÁLIA: Este auto presente foi feito à muito devota rainha dona Lianor e representado ao muito poderoso e nobre rei dom Emanuel seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1508

 

ATUALIDADE : Teatro da Comuna.

LOCAL:Tomar – Festa dos Tabuleiros- Convento de Cristo-Claustro D. João III Estreia: 1 a 5 Julho; 

Versão Cénica e Encenação:João Mota

 

8. Fama (1510)

Didascália de 1562:  A farsa seguinte foi representada à mui católica e sereníssima rainha dona Lianor, e depois ao muito alto e poderoso rei dom Manoel, na cidade de Lisboa em Santos-o-Velho, na era do Senhor de 1510

 

Resumo:

Uma guardadora de patos é a Fama e tem como ajudante o Parvo, Joane. Seus pretendentes francês, italiano e castelhano. Cada um quer levar a Fama para seu país. Mas ela sabe que pertence a Portugal, pelos grandes feitos portugueses. Faz uma descrição do poderio lusitano, enumerando terras descobertas e povos subjugados. Chegam a Fé e a Fortaleza, coroam-na com louros a Fama e colocam-na num carro triunfal ao som de música.

 

IMAGEM: O Centro de Teatro da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto (CTCMCB) apresentou FAMA a 17 de outubro, de 2015, em Pinhel no Cineteatro São Luís. Como protagonistas desta narrativa estarão em ‘palco’  Armando Luís, Francisca Magalhães, Neto Portela e Roberto Moreira. A cenografia deste espetáculo está a cargo de Joana Veloso e Mário Teixeira. A direção técnica é de Joana Veloso.

 

9. 

 Foi em 1510, que o nosso autor deu um passo decisivo na elaboração do teatro religioso. O Auto da Fé é também uma peça de Natal.
A representação decorreu na capela do palácio de
Almeirim. O rei e toda a corte assistem às matinas (na
noite de 24 de Dezembro, antes da missa da meia-noite).
Dois pastores, idênticos aos de Juan de Encina, manifestam um deslumbramento cómico ante coisas tão belas. Entra em cena a personagem alegórica da Fé, que lhes explica a Festa do Natal. Leva-os ante o Presépio e tudo termina em canções. A Fé fala em português ― uma novidade relativamente às éclogas salmantinas. O recurso à alegoria aproxima-a das «moralidades» então comuns no teatro europeu, sobretudo em França.

 

DIDASCÁLIA: A seguinte representação foi representada em Almeirim, ao mui poderoso rei Dom Manuel. Cuja invenção é que, estando nas matinas do Natal, entram dois pastores simples na Capela, e estando maravilhados no Pontifical de todas aquelas coisas, entra a Fé, que lhe declara a significação delas.


Figuras: Fé, Brás, Benito e Silvestre.

Estreia: A representação decorreu na capela do palácio de
Almeirim. O rei e toda a corte assistem às matinas (na
noite de 24 de Dezembro, antes da missa da meia-noite).

Noite de Teatro da E.N.

25 de Dez. 1967

https://www.youtube.com/watch?v=k0xHKEnNw4E

Realização radiofónica: Castela Esteves. Direcção de ensaio e produção: Raul de Carvalho. Locução: D. João da Câmara (pai do fadista Vicente da Câmara). Captação/registo de som: Lenel da Silva. Interpretação: Amélia Rey Colaço, Eunice Muñoz, Mariana Rey Monteiro, Carmen Dolores, Lourdes Norberto, Hortense Luz, Alina Vaz, Maria José, Teresa Mota, José Gamboa, Rui de Carvalho, Paulo Renato, Pedro Lemos, Alves da Costa, Luís Filipe, Barreto Poeira, Varela Silva, Armando Cortez e Raul de Carvalho.

 

10. SIBILA CASSANDRA (1511)

Uma das obras -primas do teatro europeu, como tem vindo a ser reconhecido desde os anos 1960. Neste verdadeiro "sonho de uma manhã de Natal", Gil Vicente exalta a mulher e o seu destino na figura da sibila Cassandra que recusa casar-se porque profetizou ser virgem e Mãe de deus.

 

I. Cassandra é cortejada pelo pastor Salomão mas não quer se casar. Fala sobre o lado desagradável do casamento: as mulheres são cativas, os homens são ciumentos ou conquistadores; um purgatório.

II. Salomão traz três camponesas  sibilinas, Eritreia, Ciméria e Pérsica, tias da moça, para que a convençam.

III. A seguir vêm os tios Esaias, Moyses e Abraão. Moisés apresenta  a lição moral que o casamento é sacramento; as sibilas apresentam as profecias sobre a Virgem. Cassandra diz que também profetizou que o Salvador nascerá de uma virgem e ela presume ser essa virgem.

IV. Abrem-se cortinas e surge o Presépio. Anjos cantam uma cantiga de embalar. Cada um dos presentes dirige-se ao menino e à Virgem, em adoração. Cassandra pele perdão a Maria. Cantam um hino à Virgem e um finalmente um hino bélico.

 

DIDASCÁLIA:  A obra seguinte foi representada à dita senhora (rainha D. Leonor) no mosteiro d’Enxobregas nas matinas do Natal. Trata-se nela da presunção da Sebila Cassandra, que, como per spírito profético soubesse o mistério da Encarnação, presumiu que ela era a virgem de quem o senhor havia de nascer. E com esta opinião nunca quis casar. A qual Cassandra entra em figura de pastora:

Figuras:
Cassandra ( Casandra), sibila e pastora
Salomão ( Salamão), pastor
Ciméria (Cimerya), sibila, tia e lavradora
Pérsica (Peresica), idem

Eritreia (Eruthea), idem
Abraão ( Abraham), profeta, tio e lavrador
Moisés ( Moysem), idem
Isaías ( Esaias), idem 

Quatro anjos, cantores

 

11. Fadas (1511)

Braamcamp Freire, 1511 e I. S. Révah, 1527

 

Uma feiticeira protesta contra as leis que a impedem de realizar a sua arte. E protesta junto do Rei, o que só o teatro permite. A sua tese é que todo o seu trabalho visa o bem-estar dos maltratados e sofridos de amor. Ela, mais do que uma casamenteira é uma criadora de estados amorosos por via mágica. E que há melhor que o amor? Portanto é uma benfeitora. Será que o Rei se convence? Para provar o que diz monta o seu laboratório em cena, o alguidar e faz um catálogo de seus feitiOS.

 

 O diabo que surge fala picardo e vem contrariado pois a feiticeira exerce poder sobre ele e manda-o fazer coisas como a um moço de recados. A sua revolta é latente e bem se vê que estava melhor junto das chamas infernais. A mando da feiticeira traz, por engano, dois frades, um dos quais toca gaita e o outro mulherengo, profere um sermão burlesco sobre o tema «Amor vincit omnia». O frade é vaidoso, só quando o deixam botar sermão se cala de protestos. No sermão pode ver-se ao espelho, no meio de tanto latim e metáfora. A feiticeira pede ao diabo que não se engane e que desta vez traga três fadas. Estas chegam e distribuem as cartas para um jogo de sortes. A partir daí é o teatro da corte que se joga. 

As Fadas Marinhas, ou Sereias, acabam por chegar. E a farsa converte-se em divertimento de salão. As Sereias misturam-se com a assistência e organizam jogos. Há distribuição de papelinhos com a definição de um animal, trinta e seis para os cavalheiros e vinte e três para as damas. 

 

FOTO:  Isabel Lopes

26 e 27 de Março; 1 a 3 de Abril; 30 de Setembro a 2 de Outubro 2004 – Sala Estúdio do Teatro da Rainha

Encenação | Fernando Mora Ramos
Cenografia e Figurinos | José Carlos Faria
Desenho de luz | António Plácido
Colaboração musical | Filipe Rebelo
Interpretação | Isabel Lopes, José Carlos Faria e Victor Santos

 


FICHA ARTÍSTICA

Encenação de Maria do Céu Guerra - a barraca
Teatro Cinearte, 31 de Dezembro 2002

Música: Orlando Costa

 

FICHA ARTÍSTICA

As turmas inventam : https://www.youtube.com/watch?v=K2qUFx6szO0

 

12. Físicos (1511)

    Um Clérigo, apaixonado, manda que seu Criado vá a Blanca Denise falar de seus amores. O Criado se recusa porque sempre é repelido com zombarias. Acaba indo até a moça com uma carta. A moça o maltrata e devolve a carta, rasgada e sem ter sido lida. O Clérigo adoece. A partir daí entram uma mulher e quatro médicos (os físicos). Cada um tem um diferente receituário, apresentando uma medicina que de ciência nada tem. A mulher receita “um suadouro de bosta de porco velho”. O último físico cura através da Astrologia (“Em Peixes estava a lua, isto foi na quarta feira; Mercúrio, à hora primeira… não vejo causa nenhuma para febre verdadeira”). É chamado o Padre para a extrema-unção. O Padre, ao saber que a doença dura dois anos, exclama: “Dois anos e outros dez e meio correspondem a dois dias em amores. Há quinze anos ardo em fogo! Ponho a mão sobre ti e faça de conta que está são”. E traz cantores e termina a peça. A ensalada ibérica, género musical que consiste numa canção com trechos de canções diferentes. No caso desta canção, o texto é cheio de disparates (Era em maio, véspera de Natal… Meia-noite com lua, na hora do sol sair… Era a páscoa florida, no mês de São João… etc.).
 

 

Representação: 2020 A Escola da Noite, Coimbra 

Realização António Augusto Barros

 

13. O Velho da Horta 1512

Resumo:

Entra um Velho orando um pai-nosso parafraseado: após uma expressão latina Gil Vicente acrescenta uma extensão da idéia (Pater noster criador, qui es in coelis poderoso, santificetur, Senhor, Nomen tuum, vencedor, nos céus e terra piedoso).

Vem uma Moça para comprar verdura. Ele se perde de amores e se declara de imediato. Ela colhe algo e parte. Vem o Parvo, a mando da Mulher, chamando-o para comer. Ele não quer comer nem beber. Ao contrário, pede que o criado traga a viola. Vem a Mulher. Discutem. Ela insinua que está com ciúmes e ele confessa a paixão. Expulsa-a.  Canta.

Vem Branca Gil, alcoviteira, também a comprar verduras. Ele fala de seu amor e ela diz que vai ajudá-lo. Quando ela descreve a mocinha, ele desmaia de emoção. Branca Gil inicia uma longa e engraçadíssima ladainha, pois que dá nome de santo e santa aos nobres que assistem e pede que favoreçam o pobre do Velho. Ele acorda e a partir daí ela começa a explorá-lo. Vai, cena após cena, pegando seu dinheiro para comprar presentinhos para a Moça. Entra o Alcaide com soldados e leva presa a Alcoviteira, para ser açoitada em público. Uma Mocinha vem fazer um pagamento e fala do casamento do Moça. O Velho desespera e lamenta seu estado de miséria, porque perdeu a fortuna.

 

Representação: 2015- Rio de JAneiro. Cia PeQuod

Adaptação do texto – Rosita Silveirinha, Márcio Newlands e Miguel Vellinho
Elenco –
 Raquel Botafogo, Liliane Xavier, Marcio Nascimento e Márcio Newlands .

 

Representação: 27 Março 2022 - Vinhais

O Dia Mundial do Teatro foi comemorado com a peça "O Velho da Horta", durante a tarde de hoje, 27 de março de 2022. A peça com texto original de Gil Vicente foi adaptada aos tempos modernos, com a encenação de David Carvalho, Filandorra - Teatro do Nordeste.

 

Factóide : Em 1534, na peça Auto da Cananéia, Gil Vicente voltará a fazer uma paráfrase do Pai-Nosso. Então, Cristo fala a primeira metade em latim e apresenta o desenvolvimento da idéia em português versificado; a seguir, a segunda metade em latim e novamente o desenvolvimento.

 

14. GIL VICENTE. EXORTAÇÃO DA GUERRA (1513)

 

 

Resumo:

Um Clérigo nigromante apresenta-se e fala de suas artes em magia negra. Invoca os demônios. Manda que dois deles tragam a troiana Policena, filha dos reis de Tróia. Ela cumprimenta a corte e elogia a todos. Instada pelo Clérigo, ela discursa sobre o amor cortesão. E por que causa deve o homem ser amado? Que seja um guerreiro! Vem Pantasiléia, rainha das amazonas. Ela instiga os portugueses à guerra. Aquiles também faz o seu discurso a favor da guerra. Finalmente entram Aníbal, Heitor e Cipião. Anibal exorta os fidalgos à guerra. Todos os discursos têm dois motes: é uma guerra santa porque contra os mouros; e a nobreza e a igreja devem doar suas jóias e dinheiro para a guerra. Une-se ao discurso de Anibal um canto e uma dança, com o que termina a peça.

 

 

Annibal (fala) e Todos (canto)

Ó Senhores cidadãos
Fidalgos e Regedores,
Escutae os atambores
Com ouvidos de christãos.
E a gente popular
Avante, não refusar.
Ponde a vida e a fazenda,
Porque para tal contenda
Ninguem deve recear.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

Avante! avante! Senhores!
Que na guerra com razão
Anda Deos por capitão.

“Ta la la la lão, ta la la la lão.”

 

Comentário:

Pode-se afirmar que é esta a única obra de Gil Vicente que declaradamente faz propaganda política. Partia para Azamor em Marrocos uma expedição bélica portuguesa, chefiada pelo duque de Bragança e Guimarães. Muitos dos que iam não voltavam e a vitória nem sempre era garantida. A peça dá ânimo aos nobres, invocando a glória das conquistas portuguesas que precisava ser sustentada e, claro, tinha seu preço, em dinheiro mas em vidas.

 

 

15.GIL VICENTE . COMÉDIA DO VIÚVO (1514)

 

 

 

Resumo:

Um homem lamenta a perda de sua mulher. Vem um Frade consolá-lo. A seguir um Compadre diz que ele é feliz e invejado por estar viúvo. O compadre descreve sua mulher, que é uma verdadeira serpente. Saem estes e as duas filhas do viúvo, Paula e Melícia, lamentam a orfandade. Falam as duas: “Grande segredo é morrer. Mas é muito declarado, maior segredo é viver e sendo certo a partida, não estar bem preparado”. Dom Rosvel, um Príncipe, as vê e disfarça-se de empregado. O viúvo o admite para os mais baixos serviços: cuidar dos porcos, trazer lenha. Num momento em que o viúvo está ausente, Dom Rosvel declara-se. Está apaixonado pelas duas e diz-se ser feliz apenas com as tarefas que desempenha, por poder estar junto delas, apesar de ser filho de duque e duquesa. O viúvo volta e diz já ter acertado o casamento de Paula. Nesse momento surge dom Gilberto, irmão de dom Rosvel. Algumas feiticeiras haviam falado aos seus pais de como vivia o filho perdido e ele saíra pelo mundo, para procurá-lo. Vai dom Rosvel até o príncipe Dom João III, que faz parte da platéia (nessa altura, com 12 anos) e pergunta com quem deve se casar. O príncipe indica Paula. O irmão do príncipe se apaixona por Melícia. Chegam músicos e um padre e a obra termina com os dois casamentos.

 

Excerto:

“Grande segredo é morrer. Mas é muito declarado, maior segredo é viver e sendo certo a partida, não estar bem preparado”.

 

16. Barca do Inferno (1517)

Resumo:

A barca do Diabo vai levar os pecadores à lha Perdida. Um a um (ou a dois, já que o Frade vem com sua amante) vão desfilando diante de nós alguns dos mais bem pintados tipos vicentinos: o Fidalgo, (cujo pai, segundo o Diabo, já tinha embarcado em ocasião anterior); o usurário, um parvo, um sapateiro, o frade com sua amante, a alcoviteira – mulher que organizava encontros amorosos,  muitas vezes desviando moças pobres – um judeu (porque não seguia os jejuns e os dias religiosos), um juiz e um procurador que recebiam subornos, um enforcado por ter roubado, e finalmente quatro fidalgos que tinham morrido no norte da África. Agora, ninguém consegue enganar. Nem ao Diabo nem a Gil Vicente. Porque o Diabo os conhece por dentro e os castiga com a viagem implacável. E Gil Vicente, que também os conhece por dentro, castiga-os com a implacável zombaria de sua arte refinada; nesse aspecto a Barca do Inferno é uma obra moderníssima.

Só escapam o Parvo (bem aventurados os simples…) e os Quatro Cavaleiros que morreram numa guerra que, para os católicos, era santa, porque contra os muçulmanos.

 

Comentário:

A mais famosa peça de Gil Vicente. Do ponto de vista temático é medieval. O cômico rege a atmosfera desta Barca desde a primeira cena, já que o Diabo é perspicaz. E o autor vai expondo os vícios e as hipocrisias de cada um. Aventuro-me a dizer que grandes escritores são aqueles que conhecem fundo a alma humana. Os outros são malabaristas. Gil Vicente, apesar de pertencer a um período em que a literatura moderna estava dando seus primeiros passos, já demonstra uma sinceridade grande no desnudar seus personagens.

 

TEATRO:

A Companhia de Teatro Braga (CTB) realizou uma apresentação onde é respeitado o texto original de Gil Vicente, mas o guarda-roupa, o cenário e a música transmitem uma mensagem mediante a qual associamos rapidamente uma obra do século XVI ao século XXI.

 

17. Auto da Barca do Purgatório (1518)

 

Resumo

Três Anjos cantam um hino em louvor da barca do Paraíso. Um anjo e um Diabo anunciam as suas viagens. Todavia a barca do Diabo não pode se mover. Explica o Anjo: “E o batel dos danados, porque nasceu hoje Cristo, está com os remos quebrados, em seco. Oh descuidados, cuidai nisto”. A barca do inferno não pode, pois, se mover na noite de natal. Aos poucos vão se chegando os que morreram, na ordem: um lavrador, uma regateira (vendedora de feira), um pastor, uma pastora, um menino e um taful (jogador profissional, geralmente de cartas). Os mortos desta feita são trabalhadores que cometeram apenas pecadilhos. A vendedora de rua menciona o Brasil. Impedidos que são de entrar na barca da Glória, devem permanecer na praia purgatória até merecerem o Paraíso. O menino embarca com os Anjos e o Diabo leva apenas o Taful, não porque tivesse roubado nos jogos, mas porque renegara em vida os mistérios divinos. Este tenta se defender: “Deus não quis hoje nascer pra remir os pecadores?” Anjo: “E pois, que queres dizer? Que só com o seu padecer se salvam os renegadores?”

 

Excerto:

Vamos maninha, vamos, à praia passear, vamos ver a barca bela que do céu caiu no mar. Nossa Senhora vai dentro, os anjinhos a remar, Santo Antonio é o piloto, Nosso Senhor, general. Remem, remem, remadores, que estas águas são de flores.

 

Comentário:

Ainda  que recheada por diálogos engraçados,  entre o Diabo e as almas, esta cena do purgatório é menos genial que a anterior, a do inferno. Aspecto digno de se mencionar é a linguagem dos mortos, carregada de expressões populares. Provavelmente esse falar deve incluir palavras e jargões que permitam identificar algumas regiões portuguesas da época, sutileza que escapa aos ouvidos de hoje.

 

Factóide:

A vendedora de rua fala no Brasil, numa expressão instigante: “ora, assim me salve Deus e me livre do Brasil”.  Punia-se com degredo delitos como matar um animal de outra pessoa ou trapacear nos jogos. Alguma coisa como: Deus me livre do Brasil!, naquela época, deveria ser uma fórmula comum para se esconjurar a pena desagradável.
Já dona Carolina Michaelis (1851-1925), a maior comentadora da obra de Gil Vicente, tinha feito a observação sobre a canção inicial dos Anjos. Relaciona-a com cantares populares de Portugal, um deles tendo vindo para o Brasil, até hoje uma canção infantil muito cantada:

 

 

 

 

 

 

18. Auto da Barca da Glória (1519) 

Resumo:

Na parte final da trilogia, ao contrário das duas cenas anteriores, inteiramente em português, a cena da Barca do Paraíso é em castelhano. As duas barcas estão no cais. O Diabo reclama com a Morte que esta só lhe traz “pobrecicos”, enquanto tardam os ‘”grandes e ricos”. A Morte lhe promete: “Verás que nada me escapa, desde o Conde até o Papa”.

O que se segue é um majestoso ritual, próximo de uma missa de réquiem, onde cada um dos condenados, ao orar, repete lições e responsos da liturgia, alternando frases do ofício dos defuntos com textos religiosos (O Livro de Jó). O Conde, o Duque, o Rei, o Imperador, o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa são rejeitados pelo Anjo e condenados pelo Diabo. Ao Papa diz o Diabo: “Quanto de mais alto estado, tanto mais é obrigado a dar o melhor exemplo…”.

Os Anjos anunciam a partida da barca porque as preces não foram ouvidas. Ao baixarem a vela aparece a pintura do crucifixo. De joelhos todos pedem pela última vez. Ainda assim os Anjos dão a partida. Mas vem o Cristo, estende a eles os remos da barca do Paraíso e os leva consigo.

Comentário:

 Pela primeira vez, Gil Vicente muda a tonalidade de seu texto, assumindo uma linguagem altissonante, grandiosa. Imita assim as tragédias sacras do final da idade média, das quais a mais fascinante e grandiloquente é o Auto de la Pasión (entre 1500 e 1503), de Lucas Fernandez (1474-1552), contemporâneo do dramaturgo português. Notemos, pois, com honestidade, que o teatro espanhol começou a se desenvolver antes do português.

 

Perplexidade:

O leitor atual fica perplexo.. Então os pecadores são salvos por se tratar de grandes personagens?

Gil Vicente condena os homens e respeita as funções. É implacável com os indivíduos, sejam eles imperadores ou papas, e respeitoso com os cargos que exercem. Crê na igualdade fundamental de todos os homens perante a lei moral e a morte. Mas, pertencendo à corte, vivendo na roda do rei  (que assistia à representação), deseja a manutenção das ordens e das
hierarquias. Estas atitudes são contraditórias e inconciliáveis ― e  exprimem uma tensão, em Gil Vicente.

 

Fortunas Literária e Censura

O texto de Glória aparece censurado, com dois cortes, na Copilaçam de 1586. O primeiro elimina seis versos da acusação do Diabo ao Bispo: 

Obispo honrado 

porque fuistes desposado 58b 

siempre desde juventud 

de vuestros hijos amado 

santo bienaventurado 

tal sea vuestra salud. 

 

Factos

Este gesto parece ditado pelo mesmo cuidado de vigiar desrespeitos ou escárnios a pessoas eclesiásticas, mencionado na regra geral do índex de 1581, e que tinha já levado à supressão da figura do Frade em Inferno. O segundo corte tem lugar na prece do Conde ao Cristo crucificado e implicou a supressão de três versos, em que pode não ter agradado a palavra carne, num fragmento interpretado como próximo do herético: 

viva fuente perenal 60d 

nuesa carne natural 

no permitas tanto daño.

 

O índex de 1624 interfere na rubrica que descreve as acções finais do auto e gera um lugar crítico de muita literatura pelos séculos a vir. Manda riscar tudo o que está a partir de grandes admirações de dor na edição de 1562 e impõe uma história sem desfecho explícito. Contando assim o fim do auto, nem Cristo vem salvar aquelas almas abandonadas pela barca da Glória, que parte, nem o leitor sabe o que lhes sucede. 

Houve quem executasse tal e qual, acto obediente mas desatento __ como aconteceu no exemplar de 1562 que está em Mafra e no de 1586 que serviu de base ao livro Autos das Três Barcas de Estúdios Cor, de 1967. Mas houve quem não só riscasse como acrescentasse novo texto manuscrito, que não conta exactamente o mesmo, nem parece dizer nada de mais ortodoxo: aparece-lhes o Senhor ressuscitado: volta outra vez o batel à terra, embarcam todos com grande gozo para a Glória. É o caso de um exemplar da edição de 1715 do Auto da terceira barca, descrito por Freire (1919, 1944: 457-458). 

O índex de 1747 ainda manda que se borre: Y vino Christo de la Resurreccion (...) hasta Laus Deo.

 

 

 

19. AUTO DA ÍNDIA (1519)

Resumo:

A Ama está chorando. A Criada acha que é porque o marido está de partida para as Índias. Não! É o contrário, pois dizem que já não vai. Mas ele se vai e ela fica, “em maio, quando o sangue novo atiça”. Logo surge o Castelhano que acabou de saber que o marido se fora. Ele desfia uma sequência longa de frases exageradas, para mostrar sua paixão: “y ando un cuerpo sin alma, un papel que lleva el viento, un pozo de pensamiento, una fortuna sin calma”. Ela não quer recebê-lo. E ele: “O mi vida y mi señora, luz de todo Portugal, teneis gracia especial para linda matadora”. Ela combina um encontro à noite.  A seguir surge Lemos, cheio de gentilezas: Ela: “Jesu! tamanha mesura! Sou rainha, porventura?” Ele: ” mas sois minha imperadora”. Ele despacha a Criada, para que vá as compras e traga vinho e comida. Enquanto Lemos faz a corte, o Castelhano  grita do lado de fora da janela. A Lemos, ela diz que é o irmão que está lá fora. Ao Castelhano, ela manda que se vá. Ele ameaça, fanfarrão: “Quiero destruir el mundo, quemar la casa, es la verdad, despues quemar la ciudad”. A Ama controla os dois. Quando volta o marido, ela dissimula, fala de suas saudades e rezas e jejuns. Ele narra os perigos da viagem. Vão-se a ver a nave.

 

Comentário:

Típica comédia de situações, caracterizada principalmente pelos protótipos humanos. O marido bonacheirão e ingênuo, a mulher mentirosa e adúltera, o cortejador vulgar e o espanhol fanfarrão. Comentando com venenosos e realistas apartes, a Criada vai costurando as cenas entre si. Seria esta a mais perfeita comédia de Gil Vicente? Se não for, há de ser uma das mais graciosas.

 

Imagem; Folia 2020. Chapitô. Espectáculos Com Marionetas. Gil Vicente, texto; José Henrique Neto, dramaturgia e encenação; Diogo Vaz Cavaleiro e José Henrique Neto, interpretação e manipulação.

 

20. CORTES DE JÚPITER (1521)

 

Sumário: A Providência entra, enviada por Deus. Faz vir a Júpiter, rei dos planetas. A infanta portuguesa Beatriz, filha de Dom Manuel, está de partida para Sabóia, para casar-se com o duque. O rei dos deuses deve ordenar ao mar e aos ventos tranquilidade para a viagem. Entram os quatro Ventos. Tocam trombetas para chamar o Mar. Vem o Mar, furioso. Diz a Júpiter que só obedece à Lua. Vêem a seguir o Sol, a Lua e Vênus (a Estrela Dalva). Júpiter dá as ordens. E os deuses começam a organizar o séquito da infanta: nobres, damas e gente da corte, metamorfoseados em peixes e aves, deverão acompanhar a frota pelo rio Tejo até a entrada no mar, quando ouvirão o canto de cento e trinta mil sereias. Vem Marte, que acompanhará o cortejo, para que não haja ataque de inimigos. O canto de um romance, que narra a viagem da infanta, desencanta uma Moura com seu linguajar estropiado (Mi no xaber que exto extar, mi no xaber que exto xer, mi no xaber onde andar – Não sei onde estou, não sei o que é isto, não sei por onde ando). A Moura entrega à Infanta 3 prendas mágicas. Cantam e finda-se a peça.

 

Comentário:

Famosa obra de Gil Vicente. Já à maneira renascentista, mistura o maravilhoso pagão ao maravilhoso cristão. Observe-se, porém, que não comparecem os deuses mas os astros a que eles se referem: Júpiter, o Sol, a Lua e a Estrela Dalva (Vênus) Pela presença destes e dos ventos, a obra se constitui num exemplo rico de um espetáculo feérico, grandioso.

 

 

21. CIGANAS (1521)

 

Resumo:

Entram em cena quatro ciganas. Pedem esmolas e se dizem cristãs. Querem receber objetos em troca da “buena ventura”. Entram a seguir quatro ciganos. Querem trocar cavalos. Cantam. As ciganas se oferecem para ensinar feitiços às damas presentes e em seguida lêem suas linhas das mãos. Vão-se cantando.

 

Comentário:

Toda em espanhol, esta é, por certo, a mais singela obra de Gil Vicente. Não há praticamente enredo; é um quadro. Ciganos entram  no círculo de cortesãos e lêem a sorte. O que as ciganas chamam de feitiços, hoje se podia chamar de simpatias: “outro feitiço que posso lhe dar, é que possais, senhora, saber, qual o marido que haveis de ter, e o dia e a hora em que haveis de casar”. 
Dois aspectos fazem dessa obra uma peça ímpar. O primeiro são as expressões elogiosas que os ciganos dirigem aos presentes: “lírio da Grécia”, “rosa nascida às margens do Nilo”, “esmeralda polida”, “minha linda ave Fênix”, e vai por aí. O segundo é a linguagem dos ciganos: Gil Vicente, como sempre fez, adota uma escrita de acordo com a pronúncia do personagem. Os ciganos se apresentam falando com ceceio; há uma abundância de z: Diuz, cristianuz sumuz…  Eis Gil Vicente exibindo um de seus mais preciosos troféus: as falas das gentes do povo se apresentam com uma espontaneidade realista, sem embelezamento nem artificialidade.

 

  En la cozina eztava el aznu     (50)
            bailando
            y dixéronme: don azno
            qué voz traen cazamiento
            y oz davan en axuar
           una manta y un paramiento     (55)
            hilando.

 

EstreiaRepresentada em Évora em data desconhecida ― 1521
segundo I. S. Révah, 1525 segundo Braamcamp Freire
(Révah 8, p. 1166; Braamcamp, p. 192) ―

 

Facto:  Por Alvará de 13 de Março de 1526, D. João III, proíbe os ciganos de entrarem em Portugal e ordena a expulsão de todos os que viviam no país, vontade expressa em Cortes de Torres Novas em Outubro do ano anterior, e repetição do decidido em França em 1504 e em 1511, Suécia em 1521 e Países Baixos também em 1526.

 

Factóide: Mais tarde, na Farsa Chamada Auto da Lusitânia, de 1532, as deusas entoarão uma cantiga toda com ceceios. Acreditava-se na época que os ciganos tinham vindo do Egito e, como os ciganos falavam ceceando, os deuses, que também vinham do oriente, deviam cecear.

 

Dados  A14 de Janeiro de 1526 em Madrid, da qual saiu o Tratado de alianças, com os casamentos políticos de Francisco I com Leonor de Habsburgo, viúva de Manuel I de Portugal. o da infanta Maria (criança ainda), filha de Leonor de Habsburgo e de Manuel I de Portugal, com Francisco, o filho (criança) de Francisco I de França; o da irmã de Francisco I, Margarita de Angoulême com Henrique II de Navarra; o de Germana de Foix com Fernando de Aragão, duque de Calábria…

 

 

 

 

22. RUBENA (1521)

 

Resumo:

Cena primeira: Um prólogo, como no teatro latino, anuncia a narrativa. Rubena foi engravidada por um jovem clérigo. Ela apresenta um triste monólogo sobre a sua situação (“mais dói o arrependimento que a dor do parto”). Sua criada traz uma parteira que nos brinda com sortilégios facilitadores do parto (“Dizei três vezes passinho: o verbo caro fato he: dou-vos a San Sadorninho…” A parteira faz vir uma Feiticeira para que cuide dela, escondendo assim o parto do pai de Rubena. Diabos, a mando da Feiticeira, levam Rubena à montanha. Ali ela dá à luz uma menininha, Cismena.

Cena segunda: A Feiticeira e os Diabos cuidam da menina. Duas fadas devem zelar por ela. A seguir vê-se a pequena Cismena com pastorezinhos. As fadas predizem uma boa fortuna para a menina.

Cena terceira: Já jovem, as Fadas encaminham Cismena a Creta. É adotada por uma nobre que morre e lhe deixa a fortuna. Cismena é cortejada por muitos mas acaba se casando com o príncipe da Síria.

 

Excerto

Halcon que se atreve
Con garza guerrera
Peligros espera.

Halcon que se vuela
Con garza á porfía,
Cazar la queria
Y no la recela:
Mas quien no se vela
De garza guerrera
Peligros espera.

La caza de amor
Es de altanaría;
Trabajos de dia,
De noche dolor:
Halcon cazador
Con garza tan fiera
Peligros espera.

 

Imagem: AI chtagpt4

Comentário:

Uma comédia fragmentada cheia de referências ao cancioneiro popular. Pela primeira vez em seu teatro, Gil Vicente apresenta um prólogo e divide a narrativa em cenas, como costume no teatro espanhol. Na primeira cena e em parte da segunda, a atuação entre os diabos, a feiticeira e as duas fadas dá uma nota cômica e fantástica à tragédia da moça engravidada pelo clérigo irresponsável. Ao final da segunda cena surge um clima do que poderíamos chamar de pastoral infantil. Só a terceira cena apresenta-se como comédia romântica, na verdade um drama romântico, com todos aqueles ingredientes emocionais característicos, como a disputa dos pretendentes, o enamorado que morre por amor e o Príncipe disfarçado por amor.

 

23. GIL VICENTE. FARSA DE INÊS PEREIRA (1523)

 

Resumo:

Inês não aceita a sua condição social, presa em casa. A mãe discute com ela. Vem a comadre Lianor Vaz, esbaforida. Um clérigo tentou estuprá-la. (“Irmã, eu te absolverei com o breviário de Braga”). Lianor vem falar de casamento. Traz uma carta do pretendente. Vem o mesmo a seguir, mas não passa de um simplório inexpressivo. Inês rejeita. pois quer um homem inteligente e que toque viola. Latão e Vidal, dois judeus casamenteiros, apresentam um escudeiro a Inês. Fala bem e toca viola.

Casam-se. O escudeiro transforma-se numa peste (“Já vos preguei as janelas, porque não vos ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão fechada, como freira d’Odivelas”). Vai para a guerra e morre. O primeiro pretendente herdou uma fazenda e Inês casa com ele. Ele, ao contrário do primeiro marido, satisfaz todos os desejos dela. Surge, como Ermitão, um antigo namorado. Mora numa ermida. Inês, montada a cavalo no marido, vai visitar a ermida.

 

Excerto:

Marido cuco me levades
E mais duas lousas.
-Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
Pera cervo:
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo,
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss’amo,
Com duas lousas.
– Pois assi se fazem as cousas.

 

Comentário

 Sabe-se hoje que as influências entre Gil Vicente e Juan de Encina foram recíprocas. Gil Vicente começou imitando mas, a partir de um certo momento, seu gênio explodiu em criações que ditaram aos autores peninsulares os caminhos do teatro ibérico.

Os intelectuais que o maltratavam como imitador de dramaturgos espanhóis, deram-lhe como mote o provérbio: "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube", para criar uma peça teatral. Inês Pereira é o resultado desse desafio, considerada a sua mais perfeita comédia com situações hilariantes.

 

 

24.  GIL VICENTE. AUTO EM PASTORIL PORTUGUÊS (1523)

 

Resumo:

Um lavrador entra como Prólogo e, antes de anunciar os outros personagens, fala de si mesmo: casou-se contra a vontade dos pais e foi deserdado. Há então uma interessante referência ao próprio Autor: é mesmo Gil Vicente, que agora anda sem dinheiro, quem pediu para que ele anunciasse um Auto de Natal. Entram aos poucos seis pastores com seus amores entrecruzados: Joane gosta de Caterina que gosta de Fernando que gosta de Madanela que gosta de Afonso que gosta de Inês que gosta de Joane. Discutem em torno de suas declarações de amor e suas recusas. Vem uma última pastora, Margarida, com um feixe de lenha. Diz ter visto a Virgem, o menino e seis ou sete donzelas. A Virgem mandou que ela fizesse uma advertência ao cura e ao prior. E lhe deu uma imagem sua. Margarida sai e volta com quatro clérigos. Estes entoam um hino à Virgem. E ao final cantam todos uma delicada canção natalina.

 

Excerto:


Tirai os olhos de mi,
minha vida e meu descanso,
que me estais namorando.
Os vossos olhos, Senhora,
Senhora de fermosura,
por cada momento d’hora
dão mil anos de tristura.
Temo de não ter ventura.
Vida, não m’esteis olhando,
que me estais namorando.
(Auto em Pastoril Português)

 

Quem, he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem he a que paria?
A Virgem Maria.
Hua pobre casa
Toda reluzia,
Os anjos cantavão,
O mundo dizia:
Quem he a desposada?
A Virgem sagrada.
Quem é a que paria?
A Virgem Maria.

 

Comentário:

Um Auto natalino muito singelo com amores desencontrados de pastores. O texto do hino à Virgem é tradução parafraseada de laudes em latim. E Gil Vicente aproveita novamente para criticar ferozmente os religiosos. Quando Margarida fala do cura e do prior, os outros pastores zombam do hábito que estes têm, de desrespeitarem as moças do lugar.

 

25.  Juiz da Beira (1525)

 

Pero Marques, o marido de Inês Pereira, é juiz. Houve mexericos sobre seu desempenho e ele é chamado para que julgue na corte, diante do rei. Para mostrar que ele rústico, o Porteiro apresenta-lhe uma cadeira, para que se sente durante o julgamento. Não sabe de que lado se sentar e exige um banquinho. Vem Ana Dias e reclama justiça, pois sua filha foi violada. O Juiz diz que são coisas de moços. Diz também que se deve verificar o trigal onde o facto aconteceu. Se as plantas estiverem muito amassadas. é sinal de que houve violência; do contrário, não. Vem um sapateiro e discute com Ana Dias. Ela alcovitou e seduziu a sua filha para o pecado, convidando-a a visitar um jovem. O Juiz dá a sentença: se fosse um convite para trabalhar, será que a moça iria? Mas manda que Ana Dias seja açoitada. Vem um Escudeiro. Apaixonou-se por uma moura e usou os serviços de Ana Dias. Gastou o que tinha e não conseguiu a moça. O Juiz absolve a alcoviteira. O mesmo escudeiro pede que o criado lhe devolva a roupa nova, já que não quer trabalhar mais para ele. O Juiz faz o julgamento, deixando o caso como está.

 

Vêm quatro irmãos discutir uma herança, um asno deixado pelo pai. Cada um tem uma característica principal: um é preguiçoso, um é dançarino, um é esgrimista e um é apaixonado. O Juiz quer que o asno seja citado para a próxima audiência, para que conclua o julgamento. Cantam todos e acaba-se a comédia.

TEATRO DAS BEIRAS / TMJB

28 e 29 SETEMBRO, 2024 | SALA EXPERIMENTAL

Cenografia e figurinos - Nuno Carinhas
Coprodução Centro Cultural Raiano e Teatro Municipal Joaquim Benite
Interpretação Bernardo Sarmento, Carlota Macedo, Miguel Brás, Miguel Henriques, Paulo Monteiro e Sílvia Morais

 

 

26. GIL VICENTE. FRÁGOA D’AMOR (1525)

Resumo:

Um peregrino explica que Portugal está para conquistar um castelo espanhol, símbolo da rainha Catarina que se casará com o rei português, D. João III. Vênus entra chorando à procura de seu filho Cupido. Está organizando com outros deuses uma grande forja para refazer as pessoas, para que todos estejam à altura da rainha. Armou-se no palco um castelo com uma grande forja e de lá saem quatro deuses e quatro serranas, estas representando os quatro prazeres do amor: o olhar enamorado, o falar amoroso, o ouvir com amor, o ser fiel ao amor.

Vem um negro. Entra na forja. As serranas cantam uma cantiga e os deuses batem os martelos. Sai o negro inteiramente branco mas com a fala estropiada como antes.

Vem uma velha encurvada; é a Justiça, tem a vara torcida e a balança quebrada. Quer ter mãos menores para não receber tanto dinheiro de suborno. Entra na forja mas não endireita. Tiram dela as escórias dos subornos, duas galinhas, duas perdizes e dois sacos de dinheiro, após o quê, ela volta a ser bela.

Um Frade quer virar leigo porque há demasiados frades em Portugal. Cupido pede uma Autorização de seu superior.

Um Fidalgo quer voltar a ser criança. Outro quer rejuvenescer mas sem que diminua o dinheiro que possui. Volta o Frade com bastante carvão, para ser forjado de novo e se livrar dos afazeres religiosos. Após a refundição, terminam a peça cantando.

 

 

Comentário:

Gil Vicente não perdia a chance de exibir os pecados da sociedade, embrulhando-os numa visão crítica de ironia e zombaria. Percebe-se que à medida que seu trabalho era mais reconhecido (a rainha no caso era irmã do mais poderoso rei europeu, Carlos V), ganhava coragem e aumentava a dosagem do veneno moralizante que tinha em sua pena. Desta obra, diversas frases foram suprimidas pelo Index Católico. Considerando-se também a sua obra não teatral, cartas e sermões, percebe-se que devia gozar de um prestígio muito grande na corte. Brincando, sugeria mudanças. Aqui faz uma censura á venalidade da justiça e à quantidade de padres em Portugal, o que fazia diminuir o número de trabalhadores que produziam. Como acontece em algumas peças, há indicação de que a canção das serranas é de autoria do próprio escritor.

 

 

 

27. GIL VICENTE. DOM DUARDOS (1525) 

 

Resumo:

Primalion, filho de Palmerim, imperador de Constantinopla, matou em duelo a Perequim. Dom Duardos, rei da Inglaterra, vestido de cavaleiro, chama a duelo Primalion, para vingar a desfeita à dama de Perequim. Percebendo que um dos dois valentes cavaleiros morrerá, o Imperador manda que a filha Flérida interceda e peça que se separem. Dom Duardos se apaixona por ela. Para estar junto dela, finge ser jardineiro, filho dos guardadores da horta. Flérida também se apaixona por ele, estando em conflito por amar a um homem de baixa condição que, no entranto, fala como um nobre. Diz-lhe ela: “você deve falar como se veste ou vestir-se como fala”. Após uma vitória em outro duelo, como cavaleiro estrangeiro, ele se mostra e os dois fogem para a Inglaterra.

 

Excerto

En el mes era de Abril,
De Mayo antes un dia,
Quando lirios y rosas
Muestran mas su alegria,
En la noche mas serena
Que el cielo hacer podia,
Cuando la hermosa Infanta
Flerida ya se partia:
En la huerta de su padre
Á los árboles decia:
– Quedáos á Dios, mis flores,
Mi gloria que ser solia;
Voyme á tierras estrangeras,
Pues Ventura allá me guia.
Si mi padre me buscare,
Que grande bien me queria,
Digan que Amor me lleva,
Que no fue la culpa mia:
Tal tema tomó conmigo,
Que me venció su porfía:
Triste no sé adó vó,
Ni nadie me lo decia.
Allí habla Don Duardos.

 

Comentário:

Dom Duardos… eis Gil Vicente num de seus mais impressionantes momentos. De acordo com todos os críticos, foi a primeira vez em que um tema dos livros de cavalaria subiu ao palco. A linguagem, antes, quase sempre de pastores e camponeses, agora é elegante, espirituosa. Gil Vicente faz com que o protagonista nos brinde com três solilóquios: estamos não mais diante de um confronto entre personagens, mas diante de um confronto de personagem consigo mesmo; há então um aprofundamento do conflito com sua dilaceração dolorosa ( Hamlet). O grande tema desta peça é o amor. Diz Dom Duardos: “o amor que aqui me trouxe, ainda que eu seja humilde, ele não o é”. E há também nesta obra um aprofundado relacionamento entre personagens e a paisagem onde agem, no caso, o jardim de Flérida.
Se o tema medieval por excelência era a morte e as figuras flutuassem entre alegorias celestiais e demoníacas alegorias, aqui se vê corações e mentes em conflitos apaixonados, deambulando em espaços físicos bem definidos. Giotto fizera o mesmo com a pintura: deu chão e paisagem para suas criaturas. Gil Vicente ainda não é renascentista, como os italianos seus contemporâneos, mas já não mais é medieval. Ousaria garantir que justamente nisto está sua glória maior.

 

 

28. GIL VICENTE. TEMPLO DE APOLO (1526)

 

Resumo:

O próprio Autor se apresenta como Prólogo. Esteve doente e conta as engraçadíssimas visões que teve durante a febre, citando famosas mulheres em cenas corriqueiras e ridículas. Anuncia que o palácio virou um Templo de Apolo. Apolo gostaria de reformar o mundo e apresenta algumas idéias, ridicularizando os padres. Na frente do templo é colocado um Porteiro, que deve impedir a entrada daqueles que não são dignos do Imperador Carlos V e de sua mulher, Isabel, filha de Dom Manuel e irmã do rei português Dom João III. Em pares, chegam os Romeiros para a visitação ao Templo. São alegorias diversas dos servidores do Imperador. Entram o Mundo e a Flor da Gentileza. Depois Vencimento e Virtuosa Fama. A seguir o Cetro Onipotente e a Prudente Gravidade. E o Tempo Glorioso e a Honesta Sabedoria. Oram, pedindo favores para o Imperador e sua mulher. Vem um plebeu português, rústico. Desentende-se com o Porteiro, que não o quer deixar entrar. Vem Apolo e logo a seguir os outros Romeiros. Todos cantam  e dançam em homenagem à Imperatriz.

 

Excerto:

Rogaré á Dios del cielo
Que era padre de mesura,
Que ou me case ou me mate,
Ou me tire de tristura.
Amor no puedo dormir.

 

Comentário:

Peça, como tantas outras, encomendada para uma ocasião específica, no caso a partida de Isabel, filha de D. Manuel, para a Espanha, onde se casaria com Carlos V. O início da peça é cômico mas a solenidade das falas dos Romeiros-Alegorias dão à obra um caráter de chatice oficial. A entrada do rústico devolve-lhe o sabor, até porque os textos das canções são brilhantes.
Observa-se que, para certas festividades, Gil Vicente era encarregado de criar um teatro mais superficial, sem enredo; apenas uma situação que permitisse fazer os elogios aos nobres portugueses a quem era dedicada a apresentação. Isto aconteceu com As Cortes de Júpiter e, agora, com este Templo de Apolo. A escolha do maravilhoso pagão permite que o clima da festa seja feérico, figurinos certamente exuberantes e textos bajuladores.
As duas canções fazem a exaltação à princesa Isabel, imperatriz após o casamento com Carlos V.

 

29. GIL VICENTE. O CLÉRIGO DA BEIRA (1526)

 

Resumo:

Um Clérigo e seu filho estão na caça. Parodiam uma reza com dizeres mundanos e cômicos a partir dos textos em latim, geralmente salmos. Um rústico, Gonçalo, traz coisas para vender, dois galos, um coelho e limões. É enganado e roubado por dois jovens que pretendem ser cortesãos. Um engraçadíssimo Negro, cujo falar é quase incompreensível, lhe rouba a bolsa, as roupas e o chapéu. Uma Velha aparece com uma jovem possuída por um espírito, Pedreanes. O espírito, depois de indicar ao rústico quem tinha roubado seus produtos, advinha o futuro e faz indicações astrológicas sobre alguns cortesãos.

 

 

Excerto: As «matinas» que o pitoresco clérigo da Beira recita com seu filho Francisco
antes de sair para a caça aos coelhos:

Clérigo: Domine, labia mea
Tu, priol, a pé irás.
Filho: Se cansares, assentar-te-ás,
Pois que não tens sacanea.
Clérigo: Venite, exultemos
Que cães e furão que temos
para tempo de mester.
Filho: Domine, dominus noster
nos dê com que os manter
e coelhos que levemos!
(O Clérigo da Beira)

 

Comentário:

Esta peça bem poderia se chamar O Rústico da Beira, já que é o vilão que aparece em todos os quadros, exceto no primeiro. É uma sequência de situações desencontradas, ainda que muito cômicas. O longo trecho do Negro, em que menciona bolsas mais rentáveis que a roubada e imita possíveis diálogos com um funcionário da corte, suas paródias do pai-nosso e do salve-rainha).
A parte final é semelhante à Farsa das Ciganas, quando alguns espectadores ouvem o seu horóscopo e alguns comentários sobre sua pessoa.

 

Imagem : IA 1chatgpt4 .

 

 

 

30. GIL VICENTE. FARSA DOS ALMOCREVES (1526)

 

Resumo:

Um capelão, um ourives e dois almocreves (transportavam mercadorias para as pessoas), cobram de um Fidalgo as suas dívidas. Este, com sofismas, sarcasmos ou elogios, vai protelando os pagamentos. O argumento é que ele é bem recebido na corte, tendo intimidade com o rei, prometendo indicações e promoções para cada um dos credores.

Ao final há uma conversa entre este Fidalgo e um outro, apaixonado, onde ambos expõem seus caracteres: o primeiro oportunista (por quantas damas Deus tem, não daria nem migalha), o segundo enamorado, idealista (quando fordes namorado, vireis a ser mais profundo, mais discreto e mais sutil, porque o mundo namorado é lá, senhor, outro mundo que está além do Brasil).

 

Excerto: Pero Vaz

A serra é alta, fria, e nevosa;
Vi venir serrana, gentil, graciosa,
Vi venir serrana, gentil, graciosa;

Vi venir serrana, gentil, graciosa;
Cheguei-me per ella com gran cortezia,
Cheguei-me per ella com gran cortezia.

Cheguei-me per ella de gran cortezia.
Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”
Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”

Disse-lhe: “Senhora, quereis companhia?”
Disse-me: “Escudeiro, segui vossa via.”
Disse-me: “Escudeiro, segui vossa via.”

 

Comentário:

Escassa ligação entre a primeira parte – as cobranças dos credores – e a parte final, o diálogo dos dois fidalgos. A constante homogeneidade do autor: lirismo nos textos, pintura de tipos humanos, e uma mordacidade. Aqui, Gil Vicente critica o tipo de vida de alguns fidalgos pobres, gastando o que não tinham para manter aparências de riqueza, e conseguir uma pensão real – a moradia – que consistia numa renda mensal e um tanto de cevada.
Factóide:

É citado o Brasil, desta vez significando um lugar ou uma coisa muito distante.

 

 

31. Breve Sumário da História de Deus (1527? 1529?)

 

Resumo:

Um Anjo faz o prólogo. Diz que a apresentação mostrará a criação dab initio mundi até a Ressurreição. O mundo foi criado mas Lúcifer foi tomado de inveja. Segundo o demônio Belial, seu ajudante na Corte, Deus deu ao homem e à mulher, o que tomara deles, demônios. Lúcifer ordena a Satanaz: “Faze-te de cobra, por dissimular, porque pareças do mesmo pomar, que sabes das frutas as graças que têm; porque hás de dizer: Senhora fermosa, deveis de saber que aquela fruta que vos foi vedada, oh, quanta ciência, em si tem encerrada”.

Após o primeiro pecado, que foi a desobediência, o Anjo traz o Mundo, vestido como um rei, e o Tempo. O Mundo vai oferecer a Adão e Eva condições de sobrevivência. Surge a Morte e Eva diz: “isto nasceu da triste de mi, por nossa tristura”. O Mundo faz vir Abel, o primeiro homem nascido de mulher, que conhecerá a Morte. Abel, pastor menino, canta um vilancete louvando a natureza. Satanaz tenta Abel, mas é rechaçado. Vem a Morte para levar o pastor: “Oh, Tempo, tão curtas são aqui as vidas?”. É deixado no Limbo. A Morte leva para lá também a Adão e Eva. O Mundo faz vir a Jó. Satanaz tenta Jó, que é castigado com a morte dos filhos, a perda dos bens e a lepra. Diante da Morte diz Jó: “e pois que ele é o Juiz da verdade, faça-se logo, sem mais dilatar, a sua vontade”. O Mundo traz Abraão, Moisés, Isaías e Davi. Diz Abraão: “Ó Deus mui alto, ignoto, escondido, demonstra-te às gentes, que já tempo é”. Diz Moisés: “E ele estará em pessoa comigo aos cinco livros, quando os escrever”.  Diz Davi: “O sacrifício a Deus mais aceito é o espírito mui atribulado”. E Isaías: O sacrifício é o Messias, que será nascido em Belém de Judá”. Louvam a criação do mundo e anunciam, cada um a seu modo, a chegada do Messias. A Morte os leva. João Batista vem e faz uma prédica: “Ó bravas serpentes que em serras andais, ó dragos ferozes que estais nos desertos, ouvi os secretos que estão encobertos”. É tentado mas repele a Satã e anuncia o Cristo. É levado também. No Limbo encontra os outros mortos e todos cantam um hino, pedindo que a Virgem os liberte daquele cárcere escuro, através do nascimento de seu filho. Entra Cristo. O Mundo, o Tempo e a Morte se ajoelham. Cristo fala ao Mundo e ao Tempo. Satanás o tenta com as tentações bíblicas (na tentação sobre a adoração, indica logradouros de Portugal). Cristo sai de cena, dizendo que vai a Jerusalém “porque o açoite me está esperando”. Após a cena da Ressurreição, cantores trazem um Cristo morto, numa procissão. Ouve-se trombetas e flautas. O Cristo ressuscitado liberta os prisioneiros do Limbo.

 

Excerto: Vilancete de Abel Pastor
Também as verduras;
Adorai, desertos
E serras floridas,
O Deos dos secretos,
O Senhor das vidas:
Ribeiras crescidas,
Louvae nas alturas
Deos das creaturas.

Louvae, arvoredos
De fructo presado,
Digão os penedos,
Deos seja louvado,
E louve meu gado
Nestas verduras
O Deos das alturas.


 EnsaioO tema é a história da Salvação. Nenhuma das restantes obras religiosas de Gil Vicente se aproxima tanto como estas, pela sua inspiração e concepção, dos «mistérios» que
eram representados pela mesma época no resto da Europa e particularmente em França. Mas as dimensões dos textos vicentinos são mais modestas. Para chegar a este «resumo» Gil Vicente só reteve alguns episódios da imensa história que pretendeu evocar. E,  quando não pode apresentar os acontecimentos, contenta-se em fazê-los narrar pelas personagens.
Algumas figuras do Breve Sumário participam no conjunto da acão: os diabos (Lúcifer, Satã e Belial) e as alegorias do Mundo, do Tempo e da Morte.

A peça divide-se em três partes correspondentes à Lei da Natureza (a queda de Adão e Eva, Abel e Job), à Lei da Escritura (os profetas representados por Abraão, Moisés, David e Isaías) e à Lei da Graça (São João Baptista e Cristo). Todas as personagens, desde a Queda, estão destinadas a morrer. Quando o Tempo assim decide, a Morte leva-as para as trevas do Limbo.
Mas, por fim, Cristo crucificado entra no Limbo e liberta os prisioneiros que se encontravam nele.

Desde o vilancete de Abel pastor até à "voz que clama no deserto”, passando pelas provações de Job e profecias de Isaías, Gil Vicente conta "a maior história de todos os tempos", também povoada por demónios e anjos  e as alegorias do Mundo, do Tempo e da Morte. O Breve Sumário da História de Deus é um auto sobre a condição de criaturas cuja desesperada humanidade se redime na esperança.

 

Imagem:

Teatro: Teatro Nacional São João 20 Nov – 20 Dez 2009

Encenação e cenografia Nuno Carinhas

figurinos Bernardo Monteiro desenho de luz Nuno Meira

 

Media:

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32. DIVISA DA CIDADE DE COIMBRA (1527)

 

Resumo:

Um Peregrino anuncia que a peça vai explicar factos sobre Coimbra e o seu brasão, que apresenta uma Serpente, um Leão e uma Princesa saindo de um cálice. Um nobre está na serra, vivendo como pastor. A conselho de um Ermitão, seus filhos gêmeos Celiponcio e Liberata, saem para viver de caça. E o Ermitão se dá a conhecer: É o Rei Ceridon; um selvagem chamado Monderigon escravizou seu filho e sua filha Colimena (Coimbra) com quatro damas. Estando só, Liberata canta. O selvagem a ouve e se apaixona. Volta da caça o irmão Celipondio e conta que encontrou uma serpente e um leão e que estes ficaram seus amigos. Monderigon, o selvagem, quer levar Liberata. Ela o repele e ele ameaça o irmão. Este, ajudado pela serpente e o leão, vem a matar Monderigon. Os prisioneiros são liberados. As damas explicam algumas linhagens da cidade de Coimbra, cujas familias possuem sobrenomes como Castro, Silva, Souza, Pereira e outros.

 

Excerto

Monderigón morto, segundo se prova,     (770)
        fizeram-lhe a cova lá cima num pego
        pelo qual se chama este rio Mondego,
        e a sepultura se diz Penacova.
          
        Fugiu Liberata da fúria disforme,
        e indo fugindo, mui fraca e mui febre,
    (775)
        tornou-se animal que se chama lebre
        que de Liberata tomou este nome.

 

Comentário:

Esta peça foi apresentada ao rei D. João III em Coimbra, estando a corte nesta cidade para fugir da peste que grassava em Lisboa. Típica comédia palaciana, nobres disfarçados, prisioneiros de um selvagem, animais simbólicos que se tornam amigos do protagonista.
Para explicar através de um drama as figuras do brasão, Gil Vicente faz uma curiosa junção de lendas, heráldica e alguns nomes que envolvem a cidade de Coimbra.

Gil  Vicente não se preocupou com a tradição. lendária da filha de um rei bárbaro, Ataces, em cuja bandeira figurava um leão dourado. Destruiu a cidade de Conimbriga, cujo rei era Hermenerico e em cujo emblema havia uma serpente. Para celebrar um tratado de paz, o rei vencido concedeu ao vencedor a mão de sua filha, Cindazunda. saindo de um cálice.

Gil Vicente criou sua própria narrativa. Muitas das explicações são fantasiosas, outras apenas cômicas. É mencionado que na sala onde se faz a apresentação morreu Inês de Castro.

 

 Com o fim da Liberdade selvagem, do Livre arbítrio (Liberata) e da luta pela Liberdade (Monderigón), surge a apoteose final, com o domínio das grandes famílias, da burguesia das cidades. Assim se comprovando o que o Peregrino disse no prólogo, assim a origem da nobreza, do clero e de todo o Poder senhorial.

 

EstreiaEsta comédia foi representada no mosteiro de  Santa Clara Coimbra durante a estadia que a corte fez nessa cidade entre Julho e Dezembro de 1527.

 

Representação: A Escola da Noite.  8 de Dezembro de 1993. Teatro Avenida de Coimbra
total de espectáculos - 22 (Coimbra) total de espectadores - 3.882

•••• Encenação: Nuno Carinhas.
•••• Elenco: Carlos Borges, Rosário Romão e outros

 

33. NAU D’AMORES (1527)

 

Resumo:

Entra uma princesa e se apresenta como a cidade de Lisboa. Cumprimenta o rei, a rainha e os nobres. Um príncipe estrangeiro pede a ela uma caravela. Está apaixonado e quer fazer-se ao mar, em busca de fama. Lisboa diz que a nau pertence aos reis. Ele pede então autorização para armar no porto uma nau de amores, por ser Portugal a terra que tem os melhores navios. A vela será feita de esperança, a gávea de formosura… o farol será de enganos.. e assim vai enumerando os prazeres e as dores de amor, relacionando-os às partes da náu. O capitão será o próprio deus do amor. A seguir é levada ao palco a réplica de uma caravela. O deus do amor toma lugar e a partir daí desfilam ante nossos olhos os apaixonados que farão a viagem à terra da ventura amorosa. Um frade enlouquecido de amor, que falará disparates todo o tempo; quando um pajem fala que este frade era um grande sábio, diz Amor: “pois como serão sentidos meus poderes, quantos são, se não em sábios vencidos? Os mais sábios, mais perdidos, como dirá Salomão.” Entra um pastor enamorado; um negro com sua fala estropiada; um velho perdido de amor (“Velho, vosso mundo já se foi! Eu antes tenho pensado que todo o mundo passado de novo se me voltou!”); dois fidalgos que comentam os namoros da corte. O Amor dá o sinal e todos embarcam e partem cantando.

Todas compartilham uma situação comum:
são infelizes no amor. Vêm sucessivamente um Frade
Doido, um Pastor Castelhano, um Negro, um Velho
apaixonado e dois Fidalgos portugueses. Este desfile de
insatisfeitos já anuncia o da Romagem de Agravados. Sob
outra perspectiva, este embarque para a Felicidade é
como que a imagem invertida da Barca do Inferno.

 

EstreiaÉ também uma peça de circunstância, que foi representada em Lisboa em Janeiro de 1527 para celebrar o regresso do rei e da rainha à sua capital após longa ausência.

 

Representação: 2016 . A Companhia de Teatro de Almada dá vida a figuras que Gil Vicente inventou há 500 anos
https://www.publico.pt/2016/07/07/culturaipsilon/critica/love-exciting-and-new-1737616

 

Factóide: O texto da canção entoada pelos marinheiros não pertencia ao cancioneiro popular, mas foi elaborado por Gil Vicente para a ocasião.

 

34. SERRA DA ESTRELA (1527)

 

Resumo:

A personagem Serra da Estrela, acompanhada de um criado parvo, convoca alguns pastores para visitar a Rainha que deu à luz, estando a corte na cidade de Coimbra. A rainha é Dona Catarina, mulher de D. João III. A criança é a infanta Dona Maria. Entre os pastores há enormes desencontros amorosos. Um Ermitão surge, pedindo esmola. Um pastor sugere que o Ermitão indique a cada um o seu par. Ele apresenta uns papéis, onde se lê as sortes dos pastores e são feitos os pares. A seguir o Ermitão faz desfilar uma série de condições para uma ermida onde gostaria de viver, nada santamente: “…uma cela larga… e que fosse num deserto d’infindo vinho e pão, e a fonte muito perto e longe a contemplação; … e que a filha do juiz me fizesse sempre a cama. E enquanto eu rezasse, esquecesse as ovelhas, e na cela me abraçasse e mordesse nas orelhas!” Gonçalo, um pastor, reage: “Está ali, padre, um silvado viçoso, verde, florido, com espinho tão comprido, e vós nu ali deitado… porque a vida que buscais, não na dá Deus verdadeiro”. A Serra lhes lembra que precisam ir até a Rainha. E enumera os produtos especiais da região que levará como presentes. Entram dois foliões, cada um canta uma canção. E juntos, todos cantam e dançam.

 

Excerto:

Com que olhos me olhaste,
Que tão bem vos pareci?
Tão asinha m’olvidaste,
Quem te disse mal de mi?

 

Comentário: o essencial da peça é constituído por uma pequena
farsa pastoril comparável ao Auto em Pastoril Português.
Trata-se, de facto, e mais uma vez, dos «amores loucos»
de três pares de pastores e pastoras. Um Eremita muito
pouco edificante decide promover casamentos entre eles,
tirando à sorte. Esta farsa, como a anterior, é rica em
temas folclóricos. Canta-se e dança-se. Gil Vicente
aproveitou, para a compor, toda uma poesia vinda do
fundo dos tempos e miraculosamente conservada nos
vales das montanhas.

 

Estreia: Representada em Coimbra para celebrar o nascimento, em 15 de Outubro de 1527, da infanta Dona Maria.



 

 
 
 

 

 

35 AUTO DA FEIRA (1527)

 

Resumo:

Mercúrio, o deus do comércio, após zombar da astrologia, ordena ao Tempo que arme uma tenda para uma feira de natal, a Feira das Graças: “Faço mercador-mor, ao Tempo, que aqui vem; e assim o tenho por bem, e não falte comprador, porque o Tempo tudo tem”. O Tempo – falando em decassílabos – arma a barraca e chama os visitantes. Ali nada será vendido, mas trocado. Um Anjo (Serafim) conclama os papas a pegar novas vestes, como as dos antigos. O Diabo também arma sua tendinha: tem “artes de enganar”, “falsas manhas de viver”, para clérigos e frades, “hipocrisia” para quem quer ser bispo. Entra Roma que quer comprar a paz que não encontra entre os cristãos. A ela, o Diabo oferece: “Vender-vos-ei nesta feira, mentiras, vinte três mil, todas, de nova maneira, cada uma mais sutil, que não vivais em canseira”. Roma vai ao Anjo e diz: “Oh, vendei-me a paz dos céus pois tenho o poder da terra”. O Anjo: “Atentai com quem lutais, que temo que caireis”. Após a saída de Roma, entram dois lavradores. Ambos querem se livrar das mulheres, uma é muito brava e a outra muito mansa. Um acaba por elogiar a mulher do outro e falam em trocar (feirar) as duas. Chegam outros vendedores e compradores que se instalam junto à tenda. Uma mulher fala o nome de Jesus e o Diabo desaparece, ficando o Tempo e o Anjo. A algumas moças, o Tempo oferece consciência. A outras, o Anjo oferece virtude. Mas todas recusam. Vieram à feira porque ouviram falar que nela está Nossa Senhora. E todos cantam um hino em honra da Virgem. 

 

Comentário:

Eis uma das mais violentas mostras do anti-clericalismo de Gil Vicente, que, profundamente religioso, não perdia a oportunidade para condenar os padres fingidos e, inclusive, Roma, com sua simonia-

 Nesta peça de Natal , o Presépio só é recordado no final. A «moralidade» é construída em torno da ideia do comércio. Cenas de vários estilos  desfilam ante os olhos dos espectadores, reportando-se todas elas a trocas comerciais, a actos de compra e venda. Assim, depois de um monólogo de Mercúrio, deus do comércio, assiste-se aos preparativos da feira. De um lado está uma loja ao cuidado do Tempo e de um serafim, onde se vendem as virtudes; do outro lado, uma loja onde se encontra um diabo «bufarinheiro» e onde se vendem os vícios.

Apresenta-se em seguida uma figura alegórica de Roma, ou seja, do Papado. Pretende comprar «paz, verdade e fé». Mas estas mercadorias, de que tem necessidade urgente, só podem
ser adquiridas «a troco de santa vida» e não «a troco de perdões». Toda esta cena constitui uma sátira de extrema violência contra a Roma pontifícia, apresentada como depravada e simoníaca.

Segue-se, sem transição, uma cena de farsa que poderia intitular-se «mulheres à venda». Dois camponeses querem vender mutuamente as suas consortes. Uma é «brava» e outra «mansa». Mas a brava mostra-se tão brava que o pretendente a comprador já
não a quer e cada um fica com a sua. Por fim, o auto termina com o espectáculo colorido duma feira rústica. Só então se lembra que é Natal: rapazes e raparigas vêm dançar ante o Presépio.

 

Factóide: Na edição da obra de Gil Vicente de 1586, quando o Tribunal do Santo Ofício já vigorava em Portugal e já se acendia fogueiras para queimar os hereges, a Censura Inquisitorial cortou 21 versos do texto original.

 

Imagem: gerada IA. Da edição do livro pela Porto Editora

 

 
 
 

 

 

36. Gil VICENTE. TRIUNFO DO INVERNO (1529)

Portugal. Diz que se acabaram as festas populares com suas danças e seus cantos e que o povo tem estado triste. A seguir, o Inverno entra, selvagem. Para mostrar sua força, apresenta um primeiro triunfo, que é cobrir de neve uma serra: “Soy portero de los vientos, pastor de las tempestades…” Vem um Pastor, imprecando contra o frio e elogiando o Verão. Há uma discussão entre ele e o Inverno e acabam trocando pragas. Outro Pastor vem e diz que não tem vestes contra o frio, porque esteve apaixonado durante o verão e gastou todo o dinheiro em flores e presentes para a namorada. Uma Velha surge a seguir: deve atravessar a serra descalça sobre a neve porque recebeu este desafio de um jovem, para que ele a aceite como namorada.

O Inverno despede aos três para mostrar seu segundo triunfo. É uma impressionante e realista tempestade no mar. Durante a tempestade, um dos marinheiros começa a rezar: “Oh Virgem da Luz Senhora! São Jorge! São Nicolau!” Mas diz o Piloto: “Acudi eramá a náu, deixai os santos agora!” Após isto, três Sereias entoam uma confortadora canção sobre a esperança. O Inverno leva as Sereias até as majestades e elas cantam um romance enaltecendo Portugal e seus reis.

O Verão expulsa o Inverno. Descreve o novo cenário: saiam as flores, cantem as aves. Chama a Serra de Sintra para que ela usufrua suas benesses. Um casal do povo reclama do calor, ele é ferreiro e ela forneira. Entra um grupo de moços e moças, trazendo aos reis os jardins perenais. Cantam em honra do Verão e da criança que nascera, Isabel filha de Dom João III e dona Catarina e que morreu nesse mesmo ano.


DIDASCÁLIA:  A tragicomédia que se segue é chamada Triunfo do Inverno. Foi representada ao muito alto e excelente príncipe el rei dom João, o terceiro deste nome em Portugal, na sua cidade de Lisboa, ao parto da devotíssima e muito esclarecida rainha dona Caterina nossa senhora.


É repartida em duas partes. Figuras da primeira parte: o Autor, Inverno, Brisco, João Guijarro, Velha, Piloto, Marinheiro, quatro Grumetes: Martinho, Gregório, Gonçalo, Afonso, três Sereias.

 

 

 

 


 

37. Lusitânia (1531 )

Um conjunto de episódios que se encaixam como "bonecas russas" unidos pelo fio condutor das nossas escolhas sobre o que é o bem e o mal.

A pequena farsa inicial faz «subir o pano» com uma tranquila família judaica de Lisboa. A comédia propriamente dita é precedida de um «argumento» que fala das origens fabulosas de Lusitânia.

Os dois diabos, Dinato e Berzabu, recitam «horas» parodiadas e com uma das cenas mais célebres do teatro mundial: o diálogo de Todo-o-Mundo e Ninguém.

Depois, surgem os dois pretendentes de Lusitânia, um deles o ridículo deus Mercúrio, acompanhado de deusas vindas do Oriente, que representaria a vocação comercial da nação; e o outro, o jovem e fogoso príncipe caçador Portugal, experiente nas coisas do amor e da terra.

 

IMAGEM :  22/11/2011

Auto da Lusitânia (Gil Vicente, 1531), Video realizado para o EAD da ULBRA - Criação e Direção: Carmen Costa / Fotografia: Humberto Rocha/ MotionDesign: Eduardo Vieira/ Edição e sonorização...

 

Um dos momentos altos....

GIL Vicente

38. GIL VICENTE  ROMAGEM DOS AGRAVADOS (1533)

 

Resumo:

Entra o Frei Paço, que de Frei só tem o hábito. Vive no palácio, deixou crescer o cabelo no lugar da coroa careca e gosta de usar a espada, como um nobre. “E posso me gabar que invejar, mexericar, são meus salmos de David que costumo de rezar”. Apresenta a romaria dos agravados, pessoas que se sentem injustiçadas e oprimidas.. Um rústico está descontente com Deus que sempre manda chuvas e sol em horas erradas, destruindo suas colheitas. Quer fazer do filho um padre para que este não sofra tanto. Vêm a seguir dois jovens apaixonados. Duas vendedoras fazem a romaria porque um rapaz enganou-as, casando-se com a sobrinha sem ter a situação que alardeava. Um nobre reclama da pensão real. Um Frei está descontente porque não recebeu o seu bispado. Um camponês vem com a filha. Reclama que os frades, a quem serve, tudo lhe tiram. Pede ao Frei Paço para que ensine à moça as boas maneiras da corte, para que ela melhore de posição social. A seguir são duas freiras que reclamam do rigor da clausura, pois até para conversar com parentes, apenas mulheres, ficam escondidas, sem vê-las. Duas pastoras não aceitam os casamentos que lhes foram destinados e trocam idéia sobre a maneira de evitar as bodas: uma vai dizer que teve uma visão, anunciando perigos no casamento programado; a outra dirá que consultou um feiticeiro e este avisou que se ela se casasse com aquele prometido, ficaria endemoniada. Frei Paço dá a palavra final: “Agravos que não têm cura procurai de os esquecer; qu’impossível é vencer batalha contra ventura, quem ventura não tiver”. Anuncia que a Rainha teve um filho e que todos devem cantar em homenagem ao menino, dom Felipe.

 

Comentário:

Aqui temos um Gil Vicente num de seus mais característicos momentos: o fazer desfilar figuras típicas de seu tempo. Deve ser esta a peça que mais apresenta peculiaridades sobre a sociedade daquela época. Exploração social, oportunismos, falsidades, a possibilidade de ascensão para mulheres jovens e bonitas, casamentos organizados pelas famílias. Nalguns aspectos Gil Vicente, sem nenhum mérito, é claro, é atualíssimo. Aliás, ressalte-se que algumas renvindicações já existiam naquele tempo: a liberdade de escolher marido e o excessivo rigor do claustro.
Como sempre, as críticas a práticas daninhas à sociedade, aparecem claras e contundentes. Quando as tias da moça enganada explicam como o noivo da sobrinha as enganou, enumeram pessoas do palácio que davam, sem o conhecimento do rei, documentos falsos, para indicar que o portador gozava de benefícios como uma pensão real.
A cena do exercício de comportamento palaciano entre a Moça e o Frei Paço é inesquecível. O texto específico da canção final indica que a mesma, com certeza, foi feita pelo autor.

 

39. GIL VICENTE - AMADIS DE GAULA (1533)

 

Resumo:

Amadis e seus três irmãos conversam sobre a vida de aventuras, para adquirir-se a glória. Amadis fala que não combate pela glória mas porque serve a Oriana, “formosura soberana”. Os irmãos se separam, em busca de grandes proezas. Entra o rei Lisuarte, da Inglaterra, com a corte. Um arauto anuncia que sete reis inimigos estão se preparando para atacá-lo. Surge o nome do donzel do mar, o cavaleiro perfeito, Amadis de Gaula, para combater em sua defesa. Oriana, a filha do rei, se afasta com sua dama e pede que o arauto entregue a Amadis uma carta, marcando uma entrevista. Amadis e Oriana tem um encontro, onde ele jura eterno amor e serviço a sua dama. Quando Amadis está longe, realizando suas façanhas, defendendo uma princesa ultrajada, vem um anão, seu criado, e fala a Oriana que o herói está servindo a outra dama. Oriana, indecisa a princípio, acredita e manda outra carta a Amadis, rompendo sua relação. Em desespero por ter sido considerado infiel, Amadis esconde-se na Penha Pobre e vive como ermitão. Don Dorin, que estava presente quando Amadis se desfez das armas e vestiu a túnica de ermitão, fala a Oriana sobre a fidelidade do herói. Oriana pede que Dinamarca, donzela de sua corte, vá até Amadis e o peça para voltar. Com o mal-entendido esclarecido, Amadis anuncia sua volta à Oriana.

Excerto

Oh mis angústias mayores!
Que entre dolor y dolor
Me nacen outros dolores.

Porque el mundo en que me daño
Nunca fue para mi mundo
Sino una mar de engaño.

Oh mundo de engaño!
Ardido seas en fuego.

 

 

Comentário:

Amadis de Gaula é o mais antigo e o mais famoso livro sobre cavaleiros andantes. Sua mais antiga versão é em castelhano mas muitos estudiosos o consideram como sendo de origem portuguesa. O herói é muito citado por Dom Quixote como o mais perfeito de todos (sendo caricaturalmente imitado, como no episódio da Sierra Morena). Ao levar este tema para o palco, Gil Vicente inaugurava uma nova vertente para o teatro ocidental, logo logo transformada em dramas de capa e espada. Já era um escritor cônscio de seu talento. A linguagem da peça é tipicamente palaciana, retórica e bem distanciada daqueles falares espontâneos de muitos dos personagens vicentinos. Isto não lhe diminui a graça mas concede à obra um outro tipo de graça. Há uma quantidade de citações sobre o amor.
Dois aspectos dessa peça são estranhos aos nossos olhos de hoje. O anão, que criou todo o mal-entendido entre os apaixonados, com uma mentira, não reaparece para algum tipo de punição. Esta preocupação não escaparia a um autor mais moderno. E o final da peça é brusco, porque Amadis simplesmente anuncia a volta, já que assim ordenou sua dama. O reencontro emocionante não acontece.

 

40. Cananeia

DESTAQUE: À mulher Cananeia, nada é oferecido, senão o estigma de ser estrangeira - “Confesso que sou cadela/ e de cadela nasci/ e sou mais perra que ela”: Cananeia 586-588).

 

Sumário

O Auto da Cananéia pode ser dividido em três partes: a encenação das três leis, que pode ser concebida como o prólogo da peça; a representação do ensinamento da oração do Pai-Nosso, que é uma  preparação para o que se seguirá; e a encenação do episódio da Cananeia .

 

Três pastoras representam as três leis: Silvestra, a Natureza, , pastoreia os gentios. Hebreia, a lei da Escritura, pastoreia os judeus;  Veredina, a lei da graça, é pastora dos cristãos. Esta anuncia que o Messias já nasceu e está a pregar. Satanás reclama por não ter conseguido tentar o Cristo e Belzebu lhe diz que atormenta a filha da Cananéia. Vem Cristo com seis apóstolos que lhe pedem que ensine a rezar. "Só com alma inflamada" o pai-nosso,

 

A Cananeia pede repetidamente para Jesus de Nazaré curar a filha, possessa: “Tem os seus braços torcidos, os olhos encarniçados, os cabelos desgrenhados, seus membros amortecidos. Dá gritos, faz alaridos, e o socorro está em ti”. Cristo recusa: “Meu padre me fez pastor do gado da sua vontade, das ovelhas de Jacob que procedem de Abraão”. Os apóstolos intercedem. Segue-se a passagem dos que se alimentam das migalhas do banquete. A fé salva-a. A filha é curada. Os demónios atormentam-se.

 

Excerto: Cananeia - Eu digo, Senhor, que si;
não tenho disso querela.
Confesso que sou cadela,
e de cadela nasci
e sou mais perra que ela.
E porém as cachorrinhas
com os cães deste teor,
e os gatos e galinhas
se fartão das migalhinhas
da mesa de seu senhor;
quanto mais os seus manjares,
que es padre das companhas,
fartas montes e montanhas,
e desertos e logares,
até bichos e aranhas!

 

Comentário: Nas três partes percebemos que, embora o sentido tropológico seja o predominante, a profecia apocalíptica está presente em todas.

 

IMAGEM: 8 de dezembro de 2022, o Grupo de Teatro Anzol Castiço apresentou o «Auto da Cananeia» no mesmo Mosteiro de Odivelas, onde Violante Cabral, Abadessa do Mosteiro a encomendou a GV e foi representado em 1534.

 

https://www.cm-odivelas.pt/autarquia/noticias/noticia/auto-da-cananeia-em-cena-no-mosteiro-de-odivelas

 

 

41. GIL VICENTE. AUTO DE MOFINA MENDES

[ANUNCIAÇÃO & NATIVIDADE ](1534)

 

Resumo:

Um Frade entra com um sermão cheio de citações, algumas sem nexo. Diz-se enviado para apresentar as figuras do Auto: a Virgem e suas criadas, Prudência, Pobreza, Humildade e Fé. As criadas têm livros e Maria pergunta a cada uma o que estão lendo. Elas enumeram diversas profecias sobre o nascimento de Cristo. Maria exclama: “Oh, se eu fosse tão ditosa que com estes olhos visse senhora tão preciosa, tesouro da vida nossa, e por escrava a servisse”. 

 

Entra Gabriel e faz a ela a anunciação. Prudência, Pobreza, Humildade e Fé instruem sobre as respostas ao Anjo. Após este passo, fecha-se a cortina e a cena se desloca. Pastores estão entretidos em suas tarefas e entre eles Mofina Mendes. É desajeitada. Anuncia os desastres que aconteceram a todos os animais sob seus cuidados. É despedida e recebe um pote de azeite. Há o recantado relato sobre a sonhadora que ficará rica vendendo o azeite, comprando ovos, vendendo ovos, e casando-se. Quebra-se o pote e o devaneio termina. Mofina sai cantando. Chegam outros pastores e dormem.

 

Segue-se a segunda parte do Auto natalino, que é uma “contemplação” da natividade. Virtudes conclamam ao louvor a todos e a tudo, incluindo os fenômenos da natureza. Maria pede que a Fé vá ao povoado e traga acesa a vela da fé. A Fé volta e diz que não conseguiu pessoa que a acendesse. Maria pede à Prudência que vá ao povo para acender a vela da esperança. José intercede e pede que ela desista de pedir luz às gentes. Prudência diz que não há necessidade de luz, pois que “o Senhor qu’ há de nascer é a mesma claridade”. Um Anjo canta para que os pastores acordem e adorem seu rei. Anjos tocam os instrumentos, as Virtudes cantam e os pastores dançam, saindo todos.

 

Excertos: ( Mofina Mendes)

Por mais que a dita m’engeite,
Pastores, não me deis guerra;
Que todo o humano deleite,
Como o meu pote d’azeite,
Ha de dar comsigo em terra.

 

Anjo

Recordae, pastores!
Que vos levanteis.
Naceu em terra de Judá
Hum Deos so, que vos salvará.
Que vos levanteis.
Ah pastor! Ah Pastor!
Chama todos teus parceiros,
Vereis vosso Redemptor.

 

Comentário:

Último auto natalino composto por Gil Vicente. Entre a anunciação e o nascimento, acontece a cena profana de Mofina Mendes.
Ao que tudo indica, alguns Autos separavam o sagrado do profano por meio de uma cortina. Alguns aconteciam em capelas, como o Auto dos Quatro Tempos. A anunciação feita por Gabriel é dramatizada. Após cada palavra do Anjo, Maria pergunta a suas criadas o que deve responder e elas vão aconselhando suas respostas. A ave-maria acaba se transformando num lírico texto expandido.

 

Factóide: Todo o texto da introdução, o prólogo dito pelo Frade, foi proibido nas edições de 1586 e 1624.

 

 

 


42. Ressurreição

 

GIL VICENTE 42. DIÁLOGO SOBRE A RESSURREIÇÃO (1535)

 

Resumo:

Dois rabinos conversam entre si. Um deles enuncia uma série de provérbios populares, aprendidos de pai, mãe, tio. “…quem chora ou canta, fadas más espanta… não comas quente, não perderás os dentes, quem não mente, não vem de boa gente, não achegues à forca, não te enforcarão”. Dois centuriões se juntam a eles e comunicam que o corpo de Cristo desapareceu, tendo ressuscitado como havia dito. Os rabinos não acreditam. Os centuriões enumeram os efeitos que a ressurreição fez com eles. Um ficou sem os cabelos, o outro sem os dentes e as unhas. Chega outro rabino e eles decidem que, se for verdade, calar-se-ão e negarão tudo. Anunciam que farão festas, para não darem a perceber que foram derrotados.

 

Após o "Breve Sumário", embebido de textos bíblicos e marcado por solenidade intemporal realçada pelos versos em «arte maior», o "Diálogo sobre a Ressurreição" a intenção de demarcar uma questão de fé. Apresentam-se nela três rabinos, descritos como Judeus portugueses, a conversar sobre uma série de provérbios populares, aprendidos com as suas linhagens em Portugal e a falar dos seus negócios. Quando dois centuriões encarregados de guardar o túmulo de Cristo lhes anunciam que o corpo de Cristo desapareceu e assim Jesus ressuscitou, não acreditam. Acreditar no Messias é a verdade que é preciso debater

 

Excerto

Que nos calemos em nosso calado:
… Que seja verdade, calar e negar.

 

 

Comentário:

É uma peça muito curta, escrita num tom jocoso, satirizando os judeus, todavia sem menosprezá-los. A narração da ressurreição, vista pelo ângulo dos judeus. Como fez em muitos de seus autos, Gil Vicente moderniza a situação de ações antigas, falando de factos ligados ao Portugal de seu tempo.

 


43. GIL VICENTE. AUTO DA FESTA (1535)

 

Resumo:

A Verdade reclama porque está sendo maltratada em Portugal. Após sua apresentação, senta-se num canto e passa a assistir o que virá a seguir. Um Vilão pede-lhe conselhos porque está cometendo adultério com a mulher do Juiz e foi levado à justiça. Diz que há consentimento da mulher. A Verdade lhe diz: “Não te quero aconselhar porque teu mal não tem cura… encomenda-te à ventura, que ela te-há de guiar”. Duas ciganas falam a sorte de algumas pessoas, pedindo presentes. Quando elas pedem prendas à Verdade, esta revela seu nome e as expulsa. Uma cigana joga uma praga na Verdade. “…que ás de andar arrastrada mientras la vida durar”. Um Parvo procura a porquinha de sua patroa. Um Rústico tem com o Parvo o mesmo diálogo já mostrado em Templo de Apolo entre o Rústico e o deus. Vem a Velha, mãe do Parvo, ralhando com ele e maldizendo. Um jovem faz a corte à Velha. Ela, coquete, finge não aceitar. Até Gil Vicente, diz ela, o que faz os autos para o rei, já a pediu. Logo porém ela começa a fazer o casamento mas quando ela diz seu nome, ele se recusa, por serem parentes. Ela sai para conseguir uma “absolvição”, um tipo de autorização da Igreja. Ele foge. Volta a Velha, vestida de noiva, com a autorização. O Rústico reaparece e diz que se casará com a Velha, mas desaparece a seguir. Três pastoras e um pastor cumprimentam o senhor da casa e termina a peça.

 

 

Comentário:

Talvez a penúltima peça de Gil Vicente. Mais uma vez o autor usa da sua pena para aguilhoar “Quem quiser ter de comer, que nunca fale a verdade”. A Verdade desempenha aqui um papel mais de espectadora das cenas. As cenas não são muito lógicas e o final é meio confuso, por causa das duas últimas falas da Velha. Não fica claro se é um delírio da coitada, sobre o qual os presentes fazem chacota! Há na figura da Velha algo do tragicômico chapliniano e isto já tinha sido mostrado na peça Triunfo de Inverno, quando uma outra Velha é obrigada pelo namorado a subir uma serra descalça, em plena neve.
É mencionado que esta peça foi encenada “porventura” em casa do ilustrado Conde de Vimioso. Seria este nobre tão importante ou estaria Gil Vicente perdendo o seu prestígio?

 

 

 


44. FLORESTA DE ENGANOS (1536)

Resumo:

Entra um Filósofo acorrentado a um Parvo; é uma punição, porque ele repreendeu alguns ignorantes. Anuncia os enganos que a plateia assistirá. Segue-se numa salada mista uma sequência de fatos mitológicos e episódios populares. "Quem quer enganar acaba sendo enganado". Um escudeiro, fingindo-se de Viúva, engana um Mercador que queria enganá-lo. Cupido, que está apaixonado por uma princesa persa, engana Apolo que engana o rei Telebano, pai da princesa. O rei, para salvar seu reino, engana a filha e a abandona na Floresta de Enganos. Cupido a acorrenta, mas ela, através de astúcia, faz com que ele a solte e se acorrente. Quando o rei abandonara o reino, para levar a princesa à floresta, deixou em seu lugar o “doctor Justiça Maior do Reino”, para que este o substitua no reinado. Este doutor é visitado por uma moça, encanta-se com ela e segue-a, sendo ridicularizado por ela, perdendo suas roupas. Chegam à floresta o Príncipe de Grécia, acompanhado de cinco duques. Lá chegou porque foi guiado pela Boa Fortuna. Apaixona-se pela Princesa e faz o casamento.

 

 

Comentário:

Esta, a derradeira obra de Gil Vicente, é um típico divertissement cortesão. Gil Vicente cria situações dramáticas, cômicas, patéticas, equilibrando-as. Explora a linguagem de cada personagem. Sua ironia é suave e não se observa rancor na sua crítica (ainda que diga Apolo: “o rezar não vale tanto quanto fazer o que se deve).
Um detalhe curioso dessa peça é a mistura do espanhol e do português. Os personagens sempre se exprimem na sua língua – nobres e deuses em castelhano e os rústicos em português. Mas algumas vezes o diálogo é bilingue. Exemplo: Copido: Qué has? Pastor: Estou namorado. Copido: De quien? Pastor: Que sei eu de quem, senão que o amor me tem o coração apertado. … Copido: Se desta pena te sacas, tu vivir muy mal se emplea.”


No Prólogo, em lugar de um personagem, o autor coloca dois, um acorrentado ao outro, criando uma alegoria relacionada com um provérbio da época: “Se queres matar um homem prudente, ata-lhe ao pé um ignorante”. Isto me lembra uma pintura de Pieter Bruegel (1525?-1569), que fez a descrição pictórica de provérbios. Vê-se um largo espaço de uma aldeia, cheio de pessoas em pequenos grupos, às vezes em dupla ou sós, demonstrando provérbios conhecidos na época.
O episódio do Doctor Justiça Maior do Reino é a dramatização de um dos contos da obra “Cent Nouvelles Nouvelles”, do século XV, que é uma imitação do Decameron de Boccaccio (1313-1375), acrescentada de temas vindos de outras fontes, como fabulários e novelas de Poggio Bracciolini (1380-1459).

 

Estreia:

Évora, 1536. 

Representação:

Coimbra, 20 jan. a 6 de fev. 2022

Com encenação de José Russo, director artístico do Cendrev, . O texto é representado segundo a tradução dos versos castelhanos de José Bento em 1999,

 

Imagem © Carolina Lecoq


45. 

Resumo:

 

Autos e peças de Gil Vicente


1502, terça-feira, 7 de Junho, no dia seguinte ao nascimento do príncipe D. João, futuro D. João III: Monólogo do Vaqueiro;
1502 em 24 de Dezembro, véspera de Natal: Auto Pastoril Castelhano;

1503, a 6 de Janeiro, Dia de Reis: Auto dos Reis Magos;

1504, pela festa do Corpo de Deus, nas Caldas: Auto de São Martinho;
1506, terça-feira «Gorda», 3 de Março, em Abrantes: Sermão à Rainha Lianor;
1508 Alma

1509: Quem tem Farelos?;

1509: Índia;
1510, 24 de Dezembro, véspera de Natal, em Almeirim: Auto da Fé;
1512: O Velho da Horta;
1513, 24 de Dezembro, véspera de Natal: Auto da Sibila Cassandra;
1514 Exortação da Guerra;
1517: Barca do Inferno;
1518, 1 de Abril, Quinta-feira Santa: Auto da Alma;
1518, 24 de Dezembro, véspera de Natal: Barca do Purgatório;
1519, 22 de Abril, Sexta-feira Santa: Barca da Glória;
1521: Comédia de Rubena;
1521, domingo, 4 de Agosto, na partida da infanta Dona Beatriz para a Sabóia: Cortes de Júpiter;
1522: Pranto de Maria Parda;
1522 (?): Dom Duardos;
1523, Tomar: Farsa de Inês Pereira;
1523, 24 de Dezembro, véspera de Natal, em Évora: Auto em Pastoril Português;
1523 (?)-1524 (?): Amadis de Gaula;
1524, Évora, pelas festas dos esponsais de D. João III com Dona Catarina, celebrados em Tordesilhas a 10 de Agosto: Frágua de Amor;
1525 (?)-1526 (?): O Juiz da Beira;
1526, Janeiro, em Almeirim, na partida de Dona Isabel, que ia juntar-se a seu marido, Carlos V: Templo de Apolo;
1527, fim de Janeiro, na entrada solene em Lisboa de D. João III e da rainha Dona Catarina: Nau de Amores;
1527, em Coimbra: Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra;
1527, durante o Verão, em Coimbra: Farsa dos Almocreves;
1527, em Coimbra, para celebrar o nascimento, a 15 de Outubro, de infanta Dona Maria: Serra da Estrela;
1526 (?)-1527 (?)-1528 (?): Breve Sumário da História de Deus;
1526 (?)-1527 (?)-1528 (?): Diálogo sobre a Ressurreição;
1526 (?)-1527 (?)-1528 (?), em 24 de Dezembro, véspera de Natal: Auto da Feira;
1529, começo de Maio, pelo nascimento em 28 de Abril da infanta Dona Isabel: Triunfo do Inverno;
1529 (?)-1530 (?): O Clérigo da Beira;
1532, pelo nascimento a 11 de Julho do príncipe D. Manuel (representado de novo em 1533): Auto da Lusitânia;
1533, em Évora, pelo nascimento em 25 de Maio do infante D. Filipe: Romagem de Agravados;
1534, no mosteiro de Odivelas, pela Quaresma: Auto da Cananeia;
1536, em Évora: Floresta de Enganos.


Datação difícil

 
Auto dos Quatro Tempos, representado no Natal, do final do reinado de D.
Manuel I (1521);
Comédia do Viúvo: data desconhecida, mas provavelmente antes do final do reinado de D. Manuel I (1521);
Auto da Festa: representado numa casa particular em data desconhecida mas posterior a Templo de Apolo (1526);
Farsa das Ciganas: data desconhecida, em Évora;
Auto das Fadas: data desconhecida;
Auto da Fama: data desconhecida;
Auto dos Físicos: data desconhecida;
Auto de Mofina Mendes: representado pelo Natal em data desconhecida (
1515? e 1534 ?).

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